quinta-feira, junho 29, 2006

“Doutores da mula russa”

É sabido que os portugueses adoram títulos. Antes de sermos Mários, ou Antónios ou Martas os portugueses gostam de ser tratados por doutores, engenheiros, arquitectos, embaixadores, coronéis, inspectores, barões, ou qualquer outro título mais ou menos sonante que esteja disponível.

Já vi responder ufana e orgulhosamente à chamada de “Sr. Presidente”, pessoas que são simples presidentes de pequenas Juntas de Freguesia. Aliás, Portugal deve ser um dos países que mais Presidentes tem por metro quadrado.

Quem esteja à frente de uma colectividade de recreio, de um grupo de futebol, ainda que com meia dúzia de sócios, tem direito e exige esse tratamento que lhes confere o devido prestígio.

Mas mesmo quando não existe um grau académico que possa justificar tamanha distinção, há sempre a possibilidade de virem a ser agraciados pelo Senhor Presidente da República com um grau de comendador de uma ordem mais ou menos conhecida.

Há uns três ou quatro anos, estava em serviço em Valladolid, com o meu colega Carlos. No último dia da nossa estadia fomos convidados para jantar pelo Director da Agência. Neste tipo de jantares de fim de trabalho, normalmente aproveita-se para falar de assuntos que não houve a oportunidade de abordar durante o dia-a-dia. São, normalmente, conversas longas, animadas por vezes, em que se procura, fundamentalmente, dissipar toda a tensão acumulada de uma semana e, também, porque não, procura-se, também, um pouco de convívio.

Foi um jantar simpático, num ambiente muito acolhedor e tipicamente espanhol. Para além de nós dois, os portugueses, estavam presentes os três principais responsáveis da Agência.

A determinada altura, o Director confessou a sua admiração pelo facto de ter reparado que eu e o meu colega nunca nos tivéssemos tratado por tu, como, aliás, é um hábito entre os espanhóis. Expliquei-lhes que em Portugal esse tratamento só se verificava entre pessoas que tinham um relacionamento mais próximo, mais íntimo até. Quanto aos outros, não havia esse costume. Eu, por exemplo, que lá em Espanha, até tratava o meu companheiro por Carlos (talvez para não destoar dos nossos vizinhos, que tratam todo o mundo pelo primeiro nome – eu era, para todos, o Mário), se fosse em Portugal, provavelmente, tratá-lo-ia por Dr. Carlos XXXX.
A risada surgiu sonora e espontânea. Eles nem queriam acreditar no que estavam a ouvir. É que, como disse, todos eles se tratavam por tu e todos eles eram obviamente licenciados. Nunca (jamais) tinham pensado em relacionar-se de qualquer outra forma que não fosse a que sempre usaram – a de um tratamento pessoal.

Claro está que, tanto quanto conheço, este fenómeno (que é um péssimo sintoma e nos mostra como a sociedade está doente), o do tratamento pelo título, está demasiado enraizado cá no burgo, mas eu sei que o mesmo se passa em muitos países subdesenvolvidos, nomeadamente na América Latina. Sim porque em França, na Alemanha, no Reino Unido, mesmo em Espanha, doutores são os médicos e apenas esses.

2 comentários:

Anónimo disse...

Totalmente de acordo!!! Bem haja


Pedro Ferreira

www.camuflagens.blogspot.com disse...

Talqualmente. É doença, é. No fundo, no fundo, a Psicologia explica-o! :)