segunda-feira, dezembro 10, 2007

O fim dos nossos usos e costumes?


Penso que a maioria dos que habitualmente visitam este espaço, terá lido o artigo que António Barreto escreveu no Público há umas semanas atrás ou, pelo menos, dele terá tido conhecimento através de mail.

Apesar disso, e correndo o risco de voltar a um assunto que, em termos de notícia, já foi devidamente lida e analisada, penso que o tema continua na ordem do dia e, por isso, não resisto à tentação de o publicar na íntegra.

Sou um admirador confesso de António Barreto que, desta vez, voltou a presentear-nos com um artigo muito bem elaborado e com um conjunto de questões que merecem, pelo menos a nossa reflexão:


“A meia dúzia de lavradores que comercializam directamente os seus produtos e que sobreviveram aos centros comerciais ou às grandes superfícies vai agora ser eliminada sumariamente. Os proprietários de restaurantes caseiros que sobram, e vivem no mesmo prédio em que trabalham, preparam-se, depois da chegada da "fast food", para fechar portas e mudar de vida. Os cozinheiros que faziam a domicílio pratos e "petiscos", a fim de os vender no café ao lado e que resistiram a toneladas de batatas fritas e de gordura reciclada, podem rezar as últimas orações. Todos os que cozinhavam em casa e forneciam diariamente, aos cafés e restaurantes do bairro, sopas, doces, compotas, rissóis e croquetes, podem sonhar com outros negócios. Os artesãos que comercializam produtos confeccionados à sua maneira vão ser liquidados.
A solução final vem aí. Com a lei, as políticas, as polícias, os inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão. Ninguém, deste velho mundo, sobrará. Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa os computadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos e matérias-primas industriais e quem não quer ser igual a toda a gente está condenado. Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm Estado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados cientistas do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela carismática do Ministro da Economia e da Inovação, Manuel Pinho; e agem através do pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas certamente a mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel da ração e pelos impérios do açúcar.
Em frente à Faculdade onde dou aulas, há dois ou três cafés onde os estudantes, nos intervalos, bebem uns copos, conversam, namoram e jogam às cartas ou ao dominó. Acabou! É proibido jogar!
Nas esplanadas, a partir de Janeiro, é proibido beber café em chávenas de louça, ou vinho, águas, refrigerantes e cerveja em copos de vidro. Tem de ser em copos de plástico.
Vender, nas praias ou nas romarias, bolas de Berlim ou pastéis de nata que não sejam industriais e embalados? Proibido.
Nas feiras e nos mercados, tanto em Lisboa e Porto, como em Vinhais ou Estremoz, os exércitos dos zeladores da nossa saúde e da nossa virtude fazem razias semanais e levam tudo quanto é artesanal: azeitonas, queijos, compotas, pão e enchidos.
Na província, um restaurante artesanal é gerido por uma família que tem, ao lado, a sua horta, donde retira produtos como alfaces, feijão verde, coentros, galinhas e ovos? Acabou. É proibido.
Embrulhar castanhas assadas em papel de jornal? Proibido.
Trazer da terra, na estação, cerejas e morangos? Proibido.
Usar, na mesa do restaurante, um galheteiro para o azeite e o vinagre é proibido. Tem de ser garrafas especialmente preparadas. Vender, no seu restaurante, produtos da sua quinta, azeite e azeitonas, alfaces e tomate, ovos e queijos, acabou. Está proibido.
Comprar um bolo-rei com fava e brinde porque os miúdos acham graça? Acabou. É proibido.
Ir a casa buscar duas folhas de alface, um prato de sopa e umas fatias de fiambre para servir uma refeição ligeira a um cliente apressado? Proibido.
Vender bolos, empadas, rissóis, merendas e croquetes caseiros é proibido. Só industriais.
É proibido ter pão congelado para uma emergência: só em arcas especiais e com fornos de descongelação especiais, aliás caríssimos.Servir areias, biscoitos, queijinhos de amêndoa e brigadeiros feitos pela vizinha, uma excelente cozinheira que faz isto há trinta anos? Proibido.
As regras, cujo não cumprimento leva a multas pesadas e ao encerramento do estabelecimento, são tantas que centenas de páginas não chegam para as descrever.
Nas prateleiras, diante das garrafas de Coca-Cola e de vinho tinto tem de haver etiquetas a dizer Coca-Cola e vinho tinto.
Na cozinha, tem de haver uma faca de cor diferente para cada género.
Não pode haver cruzamento de circuitos e de géneros: não se pode cortar cebola na mesma mesa em que se fazem tostas mistas.
No frigorífico, tem de haver sempre uma caixa com uma etiqueta "produto não válido", mesmo que esteja vazia.
Cada vez que se corta uma fatia de fiambre ou de queijo para uma sanduíche, tem de se colar uma etiqueta e inscrever a data e a hora dessa operação.
Não se pode guardar pão para, ao fim de vários dias, fazer torradas ou açorda.
Aproveitar outras sobras para confeccionar rissóis ou croquetes? Proibido.
Flores naturais nas mesas ou no balcão? Proibido. Têm de ser de plástico, papel ou tecido.
Torneiras de abrir e fechar à mão, como sempre se fizeram? Proibido. As torneiras nas cozinhas devem ser de abrir ao pé, ao cotovelo ou com célula fotoeléctrica.
As temperaturas do ambiente, no café, têm de ser medidas duas vezes por dia e devidamente registadas.
As temperaturas dos frigoríficos e das arcas têm de ser medidas três vezes por dia, registadas em folhas especiais e assinadas pelo funcionário certificado.
Usar colheres de pau para cozinhar, tratar da sopa ou dos fritos? Proibido. Tem de ser de plástico ou de aço.
Cortar tomate, couve, batata e outros legumes? Sim, pode ser. Desde que seja com facas de cores diferentes, em locais apropriados das mesas e das bancas, tendo o cuidado de fazer sempre uma etiqueta com a data e a hora do corte.
O dono do restaurante vai de vez em quando abastecer-se aos mercados e leva o seu próprio carro para transportar uns queijos, uns pacotes de leite e uns ovos? Proibido. Tem de ser em carros refrigerados.
Tudo isto, como é evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde. Para modernizar a economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, com estas regras, fiscalizar e ordenar as nossas casas. Para nosso bem, pois claro”.


Belo texto a que não falta a ironia que lhe dá um gosto especial. E muito actual também, uma vez que nos vamos interrogando cada vez mais se as leis que nos são impostas por Bruxelas e a determinação com que as autoridades nacionais nos pretendem proteger nos vários domínios, não irão provocar a descaracterização das tradições e dos usos e costumes dos portugueses. “Para nosso bem, pois claro”.

Mas se, genericamente, até estou de acordo com as questões colocadas por António Barreto, não posso, no entanto, deixar de assinalar que a (tão criticada) ASAE - a organização mais falada e odiada do país, como afirma António Barreto – tem tido uma acção extremamente positiva nomeadamente no campo do combate ao comércio ilegal e da segurança alimentar.

Poderá, admito, haver aqui e ali alguns exageros decorrentes dum excesso de legislação - nem sempre elaborada com o bom-senso e o conhecimento exigíveis - ou da aplicação cega por parte da ASAE dessa mesma legislação. Mas temos que reconhecer que a ASAE tem actuado “democraticamente” em vários sectores de actividade, fiscalizando tudo e todos, mesmo aqueles que, em princípio, se julgariam imunes a qualquer fiscalização.

Mesmo com todos esses exageros, e particularmente no que respeita à área da restauração, acreditem que me sinto agora muito mais seguro desde que a ASAE começou a trabalhar.

Tenho, no entanto, uma dúvida para a qual ainda não obtive resposta: “como é que os restaurantes vão confeccionar uma (verdadeira) açorda alentejana, que tradicionalmente é preparada com pão duro, se esses mesmos restaurantes não podem guardar pão de vários dias”?

2 comentários:

Anónimo disse...

Olhem que o António Barreto até tem razão. Pelo menos no que diz respeito ao bolo-rei. Digam-me lá que mal é que fazia que o bolo-rei tivesse dentro um brinde e uma fava, como sempre tiveram? Afinal as crianças achavam piada à descoberta e, quando menos se esperava, zás, vá de ir para o hospital porque o brinde, que até era uma libra de ouro, tinha sido engolida pelo miúdo. Vá de tratar do miúdo? Não. Vá de recuperar a libra.

Quanto às etiquetas nos produtos, aí acho que a medida até é boa. Por exemplo, se não houvesse uma etiqueta a dizer que a garrafa era de Coca-Cola alguém ia acreditar?

Anónimo disse...

Demascarenhas, tens toda a razão, não nos podemos queixar que a ASAE feche os olhos a algumas actividades em detrimento de outras.

Segundo notícia publicada pelo Expresso desta semana, a “fúria” da ASAE chegou aos ginásios dos hotéis. E um dos que torce o nariz à actuação daquela autoridade é Jorge Rebelo de Almeida, presidente do Grupo Hoteleiro Vila Galé.

Queixa-se o senhor: “Imaginem que agora querem-nos obrigar a ter um técnico de desporto devidamente credenciado para assegurar a segurança de meia dúzia de máquinas que temos à disposição dos hóspedes”.

Meu caro presidente, Dura Lex Sed Lex.