E já que ontem falei no Eça, aproveito hoje para dizer mais alguma coisa sobre esse grande vulto das nossas artes, e não só.
Toda a gente sabe da admiração profunda que tenho por Eça de Queiroz. Muito antes de “conhecer” o homem (que foi brilhante quer como jornalista quer como diplomata), comecei a admirar o escritor. Sem qualquer esforço, antes por puro deleite, habituei-me a “devorar” as obras escritas por Eça, incluindo, imagine-se, até as que faziam parte dos programas escolares dos meus tempos de estudante.
Li, e muitas delas reli mais do que uma vez (numa altura em que muitos desses livros eram proibidos em Portugal), obras tão marcantes como “O Mistério da Estrada de Sintra”, “O Crime do Padre Amaro”, “O Primo Basílio”, “O Mandarim”, “A Relíquia” e “Os Maias”. Adorei, e sobretudo marcaram-me, “O Crime do Padre Amaro” e “Os Maias”.
Ao contrário de outros escritores prestigiados como Aquilino, como Torga, ou até como o nosso contemporâneo António Lobo Antunes, cujos os estilos, as formas e o arrevesado das palavras que utilizam tornam, em minha opinião, a leitura e a sua compreensão por vezes um tanto ou quanto difícil, com o Eça descobrimos a clareza das palavras e a simplicidade da escrita que fazem dele um escritor único e moderno.
Apesar de ter nascido em 1845, Eça continua a ser em 2006 um escritor perfeitamente actual, que as sucessivas gerações de jovens continuam a ler com entusiasmo.
Conta-se, e eu acredito que isso fosse verdade, que o Eça mandava chamar o seu jardineiro para lhe ler todos os capítulos que ia escrevendo. Sempre que o homem não compreendia qualquer termo, o Eça rescrevia o texto, voltava a lê-lo e só o dava por concluído quando o jardineiro percebia completamente o que o escritor pretendia dizer.
Muito do meu gosto pela escrita, já o disse algures, vem do incitamento e do entusiasmo que o meu pai me transmitiu para que escrevesse, mas a leitura da obra do Eça foi fundamental para que me decidisse a tentar penetrar nos difíceis caminhos da escrita.
Eça de Queiroz é, reconhecidamente, um dos nossos mais brilhantes escritores de sempre, sendo a ironia uma marca constante da sua obra literária. Os seus romances trouxeram uma espectacular e inovadora arte narrativa, obviamente muito criticada na época, sobretudo porque revelavam um humor caricatural forte, que ainda hoje é reconhecido e apreciado.
Mas Eça não manifestou a sua ironia e o seu humor fino e corrosivo apenas nos seus livros. Também nas situações comuns do dia a dia, fazia questão de demonstrar a contundência e a mordacidade das suas palavras. Como no exemplo que se transcreve:
Esta carta de Eça de Queiroz foi publicada num jornal de Lisboa e foi dirigida ao Dr. Pinto Coelho, ao tempo director da Companhia das Águas de Lisboa.
Exmo. Senhor Pinto Coelho, digno director das águas de Lisboa e digno membro do Partido Legitimista.
Dois factores igualmente importantes para mim me levam a dirigir a V.Exª. estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças carlistas sobre as tropas republicanas em Espanha; o segundo é a falta de água na minha cozinha e no meu quarto de banho.
Abundaram os carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V.Exª, a responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas a justa comoção de V.Exª, que essas lágrimas benditas, de industrial e de político, caiam na minha banheira!
E, pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V.Exª o permite, dos nossos contratos. Em virtude de um escrito, devidamente firmado por V.Exª e por mim, temos nós – um para com o outro – certo número de direitos e encargos.
Eu obriguei-me para com V.Exª a pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o preço da água que consumisse. V.Exª., pela sua parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água para meu consumo. V.Exª. fornecia eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato eu, se não pagar, V.Exª. se não fornecer.
Se eu não pagar V.Eª. faz isto: corta-me a canalização. Quando V.Exª. não fornecer, o que hei-de eu fazer Exmo Senhor?
É evidente que para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso no caso análogo àquele em que V.Exª. me cortaria a mim a canalização, de cortar alguma coisa a V.Exª. ... Oh! E hei-de cortar-lha.
Eu não peço indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água. Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhes desgostos nem prejuízos.
Quero apenas esta pequena desafronta, bem simples e bem razoável perante o direito e a justiça distributiva: quero cortar uma coisa a V.Exª.
Rogo-lhe, Exmo Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas, nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu possa cortar a V.Exª.
Tenho a honra de ser
De V.Exª.
Com muita consideração e com umas tesouras,
Eça de Queirós”
Ficámos sem saber se o Eça chegou a cortar alguma coisa ao digníssimo director das águas ou, se o fez, qual terá sido a coisa, ou as coisas, em que as tesouras anunciadas pelo escritor teriam actuado.
De qualquer forma, deliciámo-nos com o humor e a ironia finíssimos do grande Eça.
Toda a gente sabe da admiração profunda que tenho por Eça de Queiroz. Muito antes de “conhecer” o homem (que foi brilhante quer como jornalista quer como diplomata), comecei a admirar o escritor. Sem qualquer esforço, antes por puro deleite, habituei-me a “devorar” as obras escritas por Eça, incluindo, imagine-se, até as que faziam parte dos programas escolares dos meus tempos de estudante.
Li, e muitas delas reli mais do que uma vez (numa altura em que muitos desses livros eram proibidos em Portugal), obras tão marcantes como “O Mistério da Estrada de Sintra”, “O Crime do Padre Amaro”, “O Primo Basílio”, “O Mandarim”, “A Relíquia” e “Os Maias”. Adorei, e sobretudo marcaram-me, “O Crime do Padre Amaro” e “Os Maias”.
Ao contrário de outros escritores prestigiados como Aquilino, como Torga, ou até como o nosso contemporâneo António Lobo Antunes, cujos os estilos, as formas e o arrevesado das palavras que utilizam tornam, em minha opinião, a leitura e a sua compreensão por vezes um tanto ou quanto difícil, com o Eça descobrimos a clareza das palavras e a simplicidade da escrita que fazem dele um escritor único e moderno.
Apesar de ter nascido em 1845, Eça continua a ser em 2006 um escritor perfeitamente actual, que as sucessivas gerações de jovens continuam a ler com entusiasmo.
Conta-se, e eu acredito que isso fosse verdade, que o Eça mandava chamar o seu jardineiro para lhe ler todos os capítulos que ia escrevendo. Sempre que o homem não compreendia qualquer termo, o Eça rescrevia o texto, voltava a lê-lo e só o dava por concluído quando o jardineiro percebia completamente o que o escritor pretendia dizer.
Muito do meu gosto pela escrita, já o disse algures, vem do incitamento e do entusiasmo que o meu pai me transmitiu para que escrevesse, mas a leitura da obra do Eça foi fundamental para que me decidisse a tentar penetrar nos difíceis caminhos da escrita.
Eça de Queiroz é, reconhecidamente, um dos nossos mais brilhantes escritores de sempre, sendo a ironia uma marca constante da sua obra literária. Os seus romances trouxeram uma espectacular e inovadora arte narrativa, obviamente muito criticada na época, sobretudo porque revelavam um humor caricatural forte, que ainda hoje é reconhecido e apreciado.
Mas Eça não manifestou a sua ironia e o seu humor fino e corrosivo apenas nos seus livros. Também nas situações comuns do dia a dia, fazia questão de demonstrar a contundência e a mordacidade das suas palavras. Como no exemplo que se transcreve:
Esta carta de Eça de Queiroz foi publicada num jornal de Lisboa e foi dirigida ao Dr. Pinto Coelho, ao tempo director da Companhia das Águas de Lisboa.
Exmo. Senhor Pinto Coelho, digno director das águas de Lisboa e digno membro do Partido Legitimista.
Dois factores igualmente importantes para mim me levam a dirigir a V.Exª. estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças carlistas sobre as tropas republicanas em Espanha; o segundo é a falta de água na minha cozinha e no meu quarto de banho.
Abundaram os carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V.Exª, a responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas a justa comoção de V.Exª, que essas lágrimas benditas, de industrial e de político, caiam na minha banheira!
E, pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V.Exª o permite, dos nossos contratos. Em virtude de um escrito, devidamente firmado por V.Exª e por mim, temos nós – um para com o outro – certo número de direitos e encargos.
Eu obriguei-me para com V.Exª a pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o preço da água que consumisse. V.Exª., pela sua parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água para meu consumo. V.Exª. fornecia eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato eu, se não pagar, V.Exª. se não fornecer.
Se eu não pagar V.Eª. faz isto: corta-me a canalização. Quando V.Exª. não fornecer, o que hei-de eu fazer Exmo Senhor?
É evidente que para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso no caso análogo àquele em que V.Exª. me cortaria a mim a canalização, de cortar alguma coisa a V.Exª. ... Oh! E hei-de cortar-lha.
Eu não peço indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água. Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhes desgostos nem prejuízos.
Quero apenas esta pequena desafronta, bem simples e bem razoável perante o direito e a justiça distributiva: quero cortar uma coisa a V.Exª.
Rogo-lhe, Exmo Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas, nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu possa cortar a V.Exª.
Tenho a honra de ser
De V.Exª.
Com muita consideração e com umas tesouras,
Eça de Queirós”
Ficámos sem saber se o Eça chegou a cortar alguma coisa ao digníssimo director das águas ou, se o fez, qual terá sido a coisa, ou as coisas, em que as tesouras anunciadas pelo escritor teriam actuado.
De qualquer forma, deliciámo-nos com o humor e a ironia finíssimos do grande Eça.
4 comentários:
Deliciosa, esta carta. Isto sim, belo exemplo da genialidade de Eça, digno de toda a admiração.
Eu li.
E fez muito bem em ler. E até tenho a certeza de que gostou.
Aliás, esta questão de se ler o blogue (este blogue, naturalmente) deve fazer parte das rotinas diárias. Ou seja, entra-se na sala, “abre-se a loja”, bebe-se o café, contam-se as últimas dos filhos e zás …. vamos ao blogue.
Pediu-me que comentasse. E com sinceridade! Pois então: leio-o sim, de vez em quando. Não sou a leitora mais assidua, mas sou constante.
E comentarei!
Mesmo que não pareça, gosto muito de 'comentar'...de escrever... Mas podendo ser considerada desta geração, não sou fã desta nova forma 'tecnológica' de escrita publica. Como me 'derramo' na escrita recuso-me, na generalidade das vezes, a partilhar o que é mais íntimo...o sentir pensado.
Mas pediu-me que comentasse, e eu comento:
Gosto de si. E, por isso, gosto de o 'reler' no seu blog! Assim como gostava das nossas conversas com cheiro a café acabadinho de fazer, no intervalo do tempo, entre portas e 'tanta gente'...
É, certamente, coragem o que tem para tanto dizer de si a tanta gente... Felicito-o por ela.
D.
Enviar um comentário