quinta-feira, janeiro 18, 2007

“Livre pensar é só pensar”


Millôr Fernandes, para além de presença constante no jornalismo, escreveu e traduziu mais de cem peças de teatro, fez roteiros de filmes, letras de música, expôs pinturas e ainda encontrou tempo para escrever dezenas de livros. Uma obra que, por força da própria profusão, esteve, até há pouco, dispersa por aí.

Os Portugueses começaram a tomar contacto e a conhecer um pouco mais de Millôr Fernandes quando o autor teve uma colaboração assídua no extinto Diário Popular. Se a memória não me atraiçoa, todas as quartas feiras era publicada uma página com desenhos e frases de Millor. Traços e palavras ao serviço do pensamento inteligente e bem-humorado. Como é o exemplo da frase que dá título à crónica de hoje e que, de certa forma, me acompanhou durante a vida, mesmo nos tempos em que pensar não só não era livre como era até perigoso.

Cada pessoa é única, mas algumas pessoas são mais únicas do que as outras e Millôr Fernandes é uma delas. Não há ninguém como ele na história da arte brasileira. Não por causa da sua genialidade como cartoonista ou das suas qualidades como artista plástico, mas graças à maneira como consegue combinar as duas coisas no mesmo trabalho. Millôr não oscila entre o lado sério e o engraçado como fazem alguns. Ambos os aspectos são intrínsecos a todas as imagens que encantam e divertem a quem tem o privilégio de o ler.


Para exemplificar o humor inteligente de Millôr, trago-vos um texto deste homem genial.


“O Socorro”


Ele foi cavando, foi cavando, cavando, pois sua profissão - coveiro - era cavar. Mas, de repente, na distracção do ofício que amava, percebeu que cavara de mais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia mais um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: “O que é que há?”
O coveiro então gritou, desesperado: «Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!». «Mas coitado!» - condoeu-se o bêbado. - «Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra toda de cima de você, meu pobre mortinho!». E, pegando na pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.


Moral: Nos momentos graves, é preciso verificar muito bem para quem se apela.

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