quarta-feira, novembro 29, 2006

Mário Cesariny


Morreu Mário Cesariny (1923-2006).

Poeta, surrealista e tudo – eis um retrato à medida de Mário Cesariny, o artista português que de uma forma mais plena e intensa assumiu o surrealismo no nosso país: não como método ou escola, mas como forma de insurreição permanente, na arte e na vida.

Cesariny, para além de poeta foi também pintor, actividade em que, de resto, mais se distinguiu na sua fase inicial. Mas quer numa quer noutra faceta, Cesariny foi uma figura sempre inquieta e questionadora

Para mim, no entanto, Cesariny era o poeta, embora ele próprio, se classificasse:

"Sou um poeta bastante sofrível numa época em que o tecto está muito baixo."

O humor, o recurso ao non-sense e ao absurdo, foram marcas da escrita de Cesariny, de uma ironia por vezes violenta, que incidiu sobre figuras e mitos consagrados da cultura portuguesa e ocidental.

Como homenagem a este grande vulto das nossas artes, porventura um tanto incompreendido, deixo-vos um poema, a que ele deu o nome de


Pastelaria


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

4 comentários:

Anónimo disse...

Obrigada...

Anónimo disse...

Sempre admirei homens e mulheres de pensamento livre e que não tivessem medo de dizer aquilo que tinham para dizer. Quer através da palavra quer de outras manifestações artísticas. E Cesariny, Natália Correia, Agostinho da Silva ou Rafael Bordalo Pinheiro são bons exemplos disso.
Pena que muitos deles não tenham sido devidamente compreendidos e respeitados. Pena que as novas gerações quase os não conheçam.

Anónimo disse...

De Cesariny

"Queria de ti um país de bondade e de bruma

queria de ti o mar de uma rosa de espuma"

Belo, não é?

demascarenhas disse...

Acabei de ler um extenso artigo sobre Mário Cesariny onde se dizia que ele fazia parte de uma categoria de poetas que estão do lado do excesso, do escândalo, da radical soberania.

Dos excessos e das mudanças bruscas de registo, digo eu. Senão vejam:

... ao passarmos por um autocarro cheio de rostos baços e servis, observou: Como é que estas pessoas podem ser felizes? Não podem”...

...Mas o que mais me impressionou foi o ar perversamente sereno com que a certa altura disse: “À noite, pouco antes de adormecer, penso numa coisa assim muito parecida com “puta que os pariu a todos” e fico a sentir-me tão tranquilo”...

Desse modo quase instantâneo, passou da revoltada piedade por uns ao escárnio apaziguante desses outros que teimam em fazer deste Mundo um lugar quase inabitável.