quarta-feira, janeiro 17, 2007

Uma história de vida


Há dias mão amiga fez-me chegar um mail que contava uma história. Infelizmente igual a tantas outras que conhecemos e que, cada vez mais, se vão multiplicando. De qualquer forma, o modo como ela é contada sensibilizou-me bastante.

Todos nos apercebemos que a nossa sociedade está doente, que existem grandes e cada vez mais acentuadas assimetrias entre as diversas camadas da população, e que estabelecem, claramente, formas muito desiguais de viver.

Como disse, é uma história banal, mas que nos faz reflectir sobre a realidade cruel das dificuldades da vida e da falta de oportunidades com que se confrontam muitas e muitas pessoas.

A amiga que me enviou o mail, “deu-me” duas opções:

- ou eu teria que enviar esta mensagem aos meus amigos e amigas;

- ou, simplesmente, fingia que a não tinha lido, que a história não me tinha interessado e “tocado” e o melhor seria apagá-la.

A verdade é que me senti abalado ao lê-la e, por isso, achei que o melhor seria publicá-la aqui no blog, na esperança de poder partilhar esta história de vida com mais gente. Vale a pena ler:


“Entrei apressado e com muita fome no restaurante. Escolhi uma mesa bem afastada do movimento, porque queria aproveitar os poucos minutos que dispunha naquele dia, para comer e acertar alguns bugs de programação num sistema que estava a desenvolver, além de planear a minha viagem de férias, coisa que há tempos que não sei o que são.

Pedi um filete de salmão com alcaparras em manteiga, uma salada e um sumo de laranja, afinal de contas, fome é fome, mas regime é regime, não é?

Abri o meu portátil e apanhei um susto com aquela voz baixinha atrás de mim:

- Senhor, não tem umas moedinhas?

- Não tenho, menino.

- Só uma moedinha para comprar um pão.

- Está bem, eu compro um.

Para variar, a minha caixa de entrada está cheia de e-mail. Fico distraído a ver poesias, as formatações lindas, rindo com as piadas malucas. Ah! Essa música leva-me até Londres e às boas lembranças de tempos áureos.

- Senhor, peça para colocar margarina e queijo.

Percebo nessa altura que o menino tinha ficado ali.

- Ok. Vou pedir, mas depois deixas-me trabalhar, estou muito ocupado, está bem?

Chega a minha refeição e com ela o meu mal-estar. Faço o pedido do menino, e o empregado pergunta-me se quero que mande o menino ir embora. O peso na consciência, impede-me de o dizer. Digo que está tudo bem. Deixe-o ficar. Que traga o pão e, mais uma refeição decente para ele.

Então sentou-se à minha frente e perguntou:

- Senhor, o que está fazer?

- Estou a ler uns e-mail.

- O que são e-mail?

- São mensagens electrónicas mandadas por pessoas via Internet (sabia que ele não ia entender nada, mas, a título de livrar-me de questionários desses):

- É como se fosse uma carta, só que via Internet.

- Senhor, você tem Internet?

- Tenho sim, é essencial no mundo de hoje.

- O que é Internet ?

- É um local no computador, onde podemos ver e ouvir muitas coisas, notícias, músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar, trabalhar, aprender. Tem de tudo no mundo virtual.

- E o que é virtual?

Resolvo dar uma explicação simplificada, sabendo com certeza que ele pouco vai entender e deixar-me-ia almoçar, sem culpas.

- Virtual é um local que imaginamos, algo que não podemos tocar, apanhar, pegar... é lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer. Criamos as nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que fosse.

- Que bom isso. Gostei!

- Menino, entendeste o significado da palavra virtual?

- Sim, também vivo neste mundo virtual.

- Tens computador?! - Exclamo eu!!!

- Não, mas o meu mundo também é vivido dessa maneira...Virtual. A minha mãe fica todo dia fora, chega muito tarde, quase não a vejo, enquanto eu fico a cuidar do meu irmão pequeno que vive a chorar de fome e eu dou-lhe água para ele pensar que é sopa, a minha irmã mais velha sai todo dia também, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, porque ela volta sempre com o corpo, o meu pai está na cadeia há muito tempo, mas imagino sempre a nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos brinquedos de natal e eu a estudar na escola para vir a ser um médico um dia. Isto é virtual não é senhor???

Fechei o portátil, mas não fui a tempo de impedir que as lágrimas caíssem sobre o teclado. Esperei que o menino acabasse de literalmente "devorar" o prato dele, paguei, e dei-lhe o troco, que me retribuiu com um dos mais belos e sinceros sorrisos que já recebi na vida e com um "Brigado senhor, você é muito simpático!".

Ali, naquele instante, tive a maior prova do virtualismo insensato em que vivemos todos os dias, enquanto a realidade cruel nos rodeia de verdade e fazemos de conta que não percebemos!”


É uma história forte, não acham? Seria bom pararmos por uns momentos para reflectir...

2 comentários:

Anónimo disse...

Comovente.


No meio disto, só acho preocupante que paremos para pensar nestes assuntos entre dois e-mails.

A vida segue logo depois.

Anónimo disse...

É verdade que a vida é tão voraz e tão veloz que muitas vezes só paramos para pensar quando lemos textos como estes.

Mas, a verdade, é que o sentimento da existência da tal sociedade doente e das terríveis assimetrias sociais, de que falava o autor, e a consciência de que tudo isso existe, está a ser cada vez maior e sente-se que uma parte da sociedade está desperta para o assunto. Daí, o assistir-se a uma subida do número de pessoas que estão disponíveis para ajudar os outros.

A solidariedade existe, de facto, aplicada das formas mais diferenciadas e isso faz-me acreditar que, muito embora a vida siga logo depois, existe por parte de muitos - isoladamente ou em associações - uma conciência social efectiva que vai tentando minorar as condições demasiadamente adversas da vida de muitas pessoas.