quarta-feira, abril 25, 2007

Alguém se lembra como era dantes?


Geralmente, nos feriados costumo dar descanso aos meus amigos que costumam ler e participar neste espaço. Mas, por este ser um feriado especial, em que se comemoram os 33 anos sobre o 25 de Abril de 1974, pensei que valeria a pena recordar como era a vida na sociedade portuguesa até à data da Revolução dos Cravos. Recordar para alguns mas, para outros que já nasceram depois, dar-lhes uma noção de como, de facto, se vivia em Portugal nessa época, com usos e costumes impostos e certamente bem diferentes dos que existem actualmente.

Com esse intuito, atrevi-me a seleccionar uns trechos de um artigo da jornalista Ana Cristina Leonardo, publicado no Expresso do passado sábado, cujo texto, muito bem escrito aliás, faz um retracto perfeito do Portugal de então.

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Nem tudo era mau
Não se pense que tudo era mau. Até final dos anos 60, Portugal manteve-se, em muitos aspectos, na «pole position» dos países europeus ocidentais ... Assim: era o único império colonial sobrevivente; podia orgulhar-se do ditador com mais anos no poder; apresentava as mais altas taxas de analfabetismo e mortalidade infantil; o menor número de médicos e enfermeiros por habitante; o mais baixo rendimento por habitante; a menor produtividade no trabalho; o menor número de estudantes no ensino básico e superior; o menor número de pessoas abrangidas pelos sistemas de segurança social, a menor industrialização e a maior população agrícola. No fundo, no fundo, números à parte, tratava-se de um paraíso verde. Além das paisagens bucólicas e das viúvas de portentos buços, havia Fátima, havia fado e havia futebol. E no que toca a futebol, Eusébio era o mais que tudo. Tão mais que tudo, que Salazar lhe vetou a carreira internacional, informando-o, tão simplesmente, de que ele era “património do Estado”.


Só os portugueses em crise de meia-idade, ou já refeitos dela, se podem lembrar de como era antes. E a verdade é que tinha pouca graça. Antes. Claro que nos podemos rir hoje da licença de isqueiro, obrigatória desde os anos 30 e só abolida em Maio de 1970 ... . Claro que mesmo os incondicionais de Chomsky ou Michael Moore já não terão de ir ao Ultramar para beber um gole pecaminoso de Coca-Cola, só comercializada entre nós a partir de 1977. Em Portugal Continental, como se dizia, fora proibida nos anos 30, dela só sobrando a prova dos dotes publicitários de Pessoa que lhe inventara um slogan: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.


Podemo-nos rir, ainda, do Decreto-Lei nº 31247 de Maio de 1941, que regulava o uso do fato de banho, zelando “pela moralidade pública (...) no sentido de evitar a corrupção dos costumes”, e que obrigava, para elas, a fato inteiro “sem descobrir os seios, com costas decotadas sem prejuízo do corte das cavas ser cingido na axilas”, e para eles o “calção com corte inteiro, justo à perna e reforço da parte da frente, e justo à cintura cobrindo o ventre”, regras a que os “cabos de mar” tiveram de começar a fechar os olhos quando, na década de 60, turistas bem menos atafulhados de roupa desataram a invadir o Estoril e o Algarve.


Continuamo-nos a rir desta obsessão moralista e bafienta (que fez do iconoclasta José Vilhena o autor mais censurado antes do 25 de Abril), com as calças proibidas às raparigas nos liceus e as gravatas obrigatórias para os rapazes, mais as portarias camarárias em prole do decoro vigente. O escritor Luís Sttau Monteiro, cujo pai foi embaixador em Londres até 1943, ano em que bateu com a porta a Oliveira Salazar, contava que, criança, numa audiência a que assistira, o ditador reparara nas suas botas e lhe perguntara onde as comprara. Quando lhe respondeu que fora em Londres, este comentara: “Modernices! Modernices!”


Menos motivos para rir
O sorriso começa a amarelecer quando nos lembramos das cargas da polícia de choque, como as do Verão de 1969, nos Salesianos do Estoril (num festival que misturava bandas rock e os chamados cantores de intervenção), apesar da forma pícara como José Cid recorda os acontecimentos: “uma das cenas mais impressionantes foi a polícia batendo num grupo de turistas japoneses. Quando os policiais começaram a agredir os jovens, que estavam ali pacificamente, numa de música, os japoneses puxaram das máquinas fotográficas e começaram a tirar fotografias; assim que a polícia viu aquilo... "máquinas para cá"“.


O sorriso desmaia à medida em que recordamos o milhão e meio de emigrantes obrigados a dar o salto, entre 1960 e 1973, sangria de pobres que o escritor José Cardoso Pires resumiria de forma lapidar: “Da minha terra natal tenho uma definição simplista: deserto de Pedras, Padres e Pedintes. Aldeia emigrada, portanto”.


O sorriso já se foi por completo quando chegamos aos cerca de 10 mil soldados mortos na guerra colonial e, ajudados pelo livro de Ferreira Fernandes “Lembro-me que…”, nos lembramos, também nós, dos poucos ou nenhuns direitos das mulheres cujas vidas valiam penas de dois anos, como a aplicada a Adélio da Custódia pelo assassínio da mulher Maria Pais Pimenta, explicada assim pelo juiz corregedor do Círculo Judicial de Viseu: “Porque se justifica perfeitamente a reacção do réu contra a mulher adúltera que abandonou o lar, o marido e dois filhos de tenra idade, para seguir um saltimbanco”.


E sem motivo aparente vem-nos à cabeça o drama privilegiado do poeta Alexandre O’Neill, que em Nora Mitrani encontrara “l’amour fou”. Uma francesa de passagem por Lisboa espera agora por ele em Paris, mas a PIDE nega-lhe o passaporte e O’Neill nunca tornará a rever Nora que se suicida em 1961.


Em época de censura
Chegamos assim à parte que está mesmo, mesmo, fora de moda: a censura e a polícia política do regime. Em entrevista a António Ferro, Dezembro de 1932, a propósito dos boatos que punham em causa o bom-nome da polícia, Salazar explicara-se bem: “(…) quero informá-lo de que se chegou à conclusão de que as pessoas maltratadas eram sempre, ou quase sempre, temíveis bombistas, que se recusavam a confessar, apesar de todas as habilidades da polícia, onde tinham escondido as suas armas criminosas e mortais”. Linhas à frente, surge a prova mil vezes repetida sobre a brandura dos meios e a rectidão evidente dos fins: “Eu pergunto a mim próprio (…) se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não vale bem, não justifica largamente, meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras”. E nesta “meia dúzia de safanões” se fundaria o mito urbano que continua a rever e a absolver a tortura, desrespeitando os mortos com nome próprio.


Quanto à censura (uma prática que, em Portugal, verdade seja dita, recua aos tempos da Inquisição praticamente sem interrupções), prévia e de lápis azul em riste, no caso da imprensa, preferia a apreensão ulterior quando se tratava de livros. Segundo a Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo, o regime de Salazar/Caetano proibiu cerca de 3300 obras e até o velho Aquilino Ribeiro foi alvo de um processo-crime, pelo crime de ter escrito “Quando os Lobos Uivam”. O Secretariado Nacional de Informação (SNI) mostrava-se quase sempre de uma eficácia imbatível: em 1965, em apenas quatro dias, apreendia 70 mil títulos à Europa-América, em dois anos subtraía à Seara Nova milhares de contos de livros; quanto à editora Minotauro, era simplesmente encerrada.


Música, artes plásticas, filmes ... só entre 1964 e 1967 foram apresentados à censura 1301 filmes, dos quais 145 foram proibidos e 693 autorizados com cortes, e TV a preto e branco (a cores só em 1980), nada escapava à mutilação. A justificação para o zelo recuava ao Decreto-Lei 22469 de Março de 1933: “A censura terá somente por fim impedir a subversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade”.


Apesar da bondade expressa dos censores, alguns jornalistas insistiam em desorientar a sociedade. Um dia, no “República”, Vítor Direito discorria a propósito do estado do tempo: “Manhã de nevoeiro transforma a cidade (…) Não se vê um palmo à frente do nariz (…) Andam por aí certos senhores, feitos meteorologistas de trazer por casa, a prever “boas abertas”. Mas o nevoeiro persiste”.


Afinal, eram tempos divertidos. Acabaram com o 25 de Abril.”



Ao lerem este artigo, tenho a esperança que as novas gerações que não viveram o peso da ditadura, nem, muitas vezes, conhecem a real e nefasta situação que nos era imposta, e em que um simples desabafo podia ser escutado por alguém e nos levar à prisão e à tortura, tenho esperança, repito, que saibam valorizar devidamente o facto de viverem em democracia e em liberdade.



10 comentários:

Anónimo disse...

Gostaria apenas de acrescentar 4 coisas:

a)que o texto (bem escrito, de resto) não toca em todas aberrações que nos eram impostas;

b)também eu espero que as gerações pós-25 de Abril saibam valorizar devidamente o facto de viverem em democracia e em liberdade;

c)que apesar das muitas injustiças que continuam a verificar-se, das imensas dificuldades que continuam a existir e a fazer-nos, por vezes, desacreditar, não tenham dúvidas que a liberdade é um valor maravilhoso. Sermos livres significa que somos nós que fazemos as nossas escolhas, os nossos caminhos;

d)e, finalmente, que liberdade implica responsabilidade e justiça.

Anónimo disse...

Continuo a arrepiar-me com as imagens de 25.
Todos pudemos gritar:
Liberdade
Viva a Liberdade.

Só o facto de poder gritar, era tudo... nunca tinha visto tantos sorrisos, tanta vontade de estar com os outros, de partilhar os abraços, ... e de gritar somente.

E as estórias que, estou convencido, passarão à historia, que profundamente marcaram a minha juventude ... muitas, morrerão connosco, mas o principal, a Liberdade ficará com os novos, mesmo que não o reconheçam.

Anónimo disse...

O texto está impecável, de facto.

Mas só me resta uma dúvida. Será que somos assim tão livres como pensamos?

Anónimo disse...

Caro Porcos no espaço

Poderemos não ser tão livres como desejaríamos, poderemos estar desiludidos porque tantas metas e objectivos nunca chegaram a ser alcançados, poderemos estar apreensivos quanto às pressões que sentimos constantemente, quer do poder político, quer do poder empresarial, mas, asseguro-te, que hoje vivemos em liberdade.

Basta pensares que ao contrário do que acontecia antes do 25 de Abril, hoje podes expressar livremente as tuas opiniões - de forma isolada ou em associações - mesmo que sejam contra o governo e as suas políticas, há eleições livres e sérias e nelas podes votar livremente, podes ausentar-te do país quando te apetecer, o que dantes não te era permitido. E quanto às mulheres, bem, lembra-te só que elas só podiam ir a Badajoz comprar caramelos se os maridos as autorizassem e, não menos importante, não podiam sequer votar.

Por isso, bem vês. Sentimos que muita coisa está mal, que não foram cumpridos muitos dos desígnios prometidos pela revolução, mas, mesmo assim, não tenhamos dúvidas que vivemos em liberdade.

Anónimo disse...

Absolutamente de acordo com o MyGod. Só acrescentaria o seguinte. É necessário não esquecer que a liberdade é tudo isso que se disse, mas também que foi a liberdade que permitiu passar-se de um país miseravelmente analfabeto pintado a cinzento e preto, para um outro onde foi possível haver uma escolaridade obrigatória, um acesso livre ao ensino universitário, e a possibilidade de ler e consultar todo o tipo de jornais sem artigos censurados pelo terrível lápis azul e de ler os livros que antes eram de publicação proibida porque o antigo regime os considerava demasiado subversivos e perigosos.

Anónimo disse...

Estou perfeitamente ciente de como o país mudou e dos benefícios que a revolução nos trouxe. Longe de mim pôr isso em causa.

A liberdade é um tema demasiado complexo para ser discutido de uma só abordagem, e aquela de que falo não é exactamente a mesma de que se fala aqui. Ou seja, entrei na sala errada e lancei a confusão.

As minhas desculpas.

Mais uma vez, os meus parabéns à jornalista. Está um belíssimo texto.

Anónimo disse...

E afinal a informação não é assim tão pouca. Para quem usa o argumento de que não sabe porque ainda não tinha nascido, eu digo o seguinte: suspire de alivio por não ter vivido todas as coisas (e outras ainda) tão bem descritas no artigo, mas não é desculpa para não ter conhecimento delas. Existem muitas fontes de informação que podem ser consultadas. Ou será que é necessário transpor a nossa história para um jogo de playstation? Um especial Morangos com Açucar pré 25 de Abril?
Alterar os programas escolares é uma boa medida... para os mais novos. E quem já não tá na escola? Que desculpa tem?

Anónimo disse...

Errata: onde se lê "tá" deve ler-se "está". Pelo engano peço as minhas desculpas.

Anónimo disse...

muito obrigada por terem lido o meu texto

Anónimo disse...

Errata: onde se lê "retracto" (último parágrafo do intróito) deve ler-se "retrato". Assim é que é! Pela desatenção, as minhas desculpas.