quarta-feira, junho 20, 2007

Mas, afinal, aqueles ganharam o quê?


Depois de andados uns bons quilómetros a pé, o calor, a distância e o cansaço obrigavam-me a que descansasse um pouco e, se possível, acompanhado de uma bebida fresca.

Entrei na primeira quitanda que me apareceu pela frente. “Leitaria Lyz”, assim se chamava. Um nome muito sugestivo e que me pareceu, aparentemente, protector. Duas montras estreitas (decoradas com pacotes de bolachas Maria e com garrafas de vinho barato como, aliás, uma leitaria que se preze deve ostentar), ladeavam uma porta também estreita que dava acesso a uma sala igualmente estreita, com um balcão ao fundo.

Junto ao tecto, não podia faltar, naturalmente, um televisor de ecrã pequeno, para não destoar. A única coisa que sobressaía daquela pequenez toda era o som do televisor que estava aberrantemente alto, muitos decibéis acima do que seria adequado ao tamanho da casa.

Pedida a imperial fresquinha, olhei de soslaio para quem estava sentado na mesa do lado, por acaso completamente encostada à minha.

Contudo, nem necessitaria disfarçar o olhar, porque o meu vizinho, homem de mais de setenta anos, estava absorto por completo nas imagens que a televisão passava e sorria permanentemente perante o que ia vendo.

Olhei também e vi que estava a ser transmitido um directo com as claques afectas ao Futebol Clube do Porto, que comemoravam a conquista do campeonato nacional de futebol.

As pessoas pulavam sem cessar e gritavam num coro que prometia durar pela noite dentro ... “ganhámos, ganhámos, ganhámos ...”

Foi então que o meu companheiro de mesa, virando lentamente o rosto na minha direcção, mas mantendo o sorriso, me perguntou “mas, afinal, aqueles ganharam o quê?”

Expliquei-lhe que o clube deles, tinha ganho o campeonato de futebol e toda aquela euforia era por isso mesmo, por serem campeões.

“Eu sei”, disse o homem, “o clube ganhou, ganhou o treinador deles, ganharam os jogadores, eu isso percebo. Mas aquela gente toda que está para ali aos pulos e a gritar, ganharam o quê, isso é que eu não entendo”.

Estive tentado a falar-lhe das minhas teorias sobre os fenómenos metafísicos que são subjacentes ao que ao futebol diz respeito mas, também por respeito por um homem já muito vivido e que durante anos e anos fez parte de um país em que “Fátima, Futebol e Fado” constituíam a única razão da sua felicidade, preferi perguntar-lhe se me acompanhava em mais uma imperial, ao que ele, sem nunca perder o sorriso, respondeu “só se for para fazer um brinde àqueles que dizem que ganharam”

Feito o brinde, despejados os copos, despedi-me do senhor e saí da Leitaria, dando uma última espreitadela às garrafas de vinho expostas nas montras.

Enquanto completava a minha caminhada, não me saía da cabeça a expressão e o sorriso daquele senhor, nem a pergunta que ele tão genuinamente me fizera “mas, afinal, aqueles ganharam o quê?”

3 comentários:

Anónimo disse...

“mas, afinal, aqueles ganharam o quê?” parece-me uma frase muito mais inteligente, acutilante e crítica do que quaisquer "teorias sobre os fenómenos metafísicos que são subjacentes ao futebol" que possa enunciar. Como tal não percebo minimamente essa colagem de esterótipos de homem limitado ao “Fátima, Futebol e Fado”. A não ser que não tenha percebido minimamente o alcance da sua frase.

Anónimo disse...

Como não tenho o prazer de o conhecer e não sei, portanto, a sua idade, não posso contraditar o seu comentário com o argumento que durante quase cinco décadas se vivia neste país à beira mar plantado, debaixo de um cinzentismo absoluto, em que para além da hospitalidade das nossas gentes, do sol que nunca nos faltou e das touradas que também eram um símbolo dos usos e costumes de então, pouco mais restava aos portugueses do que o trabalho, o silêncio e o tal estereótipo, se assim quiser, do “Fátima, Futebol e Fado”.

Era, afinal, ao que as pessoas se agarravam, a sua tábua de salvação, a bem dizer.

Os tais cinquenta anos de atraso em que o país vivia em relação, por exemplo, aos Estados Unidos, não eram uma simples figura de retórica. Eram mesmo anos e anos de atraso em quase todos os sectores, e em que em Portugal pouco se sabia do que ia acontecendo no mundo para além da nossa vizinha Espanha. Pouco saber esse que era fomentado pelo governo autoritário de Salazar, porque não convinha que novas ideias provenientes do estrangeiro, pudessem criar quaisquer outras ideias ao povo, que esse mesmo povo começasse a tomar consciência de determinadas coisas e daí a manifestar-se, era um pulinho.

Mas ainda para responder à sua não compreensão da colagem aos tais estereótipos, basta investigar um pouco e descobrir que tipo de programas é que eram transmitidos na RTP, então o único canal de televisão existente.

Todas as semanas havia pelo menos um programa de fados e a transmissão de um jogo de futebol e de uma tourada. Quanto à parte religiosa, todos os domingos era transmitida uma missa. Isto, claro está, para além de diversos outros programas dedicados às mesmas temáticas, que passavam insistentemente durante a semana. Interessava, sobretudo, que o povo estivesse entretido com estes programas para que não houvesse a mínima possibilidade de pensarem noutras coisas que pudessem vir a incomodar o regime.

Mas estes argumentos (e muitos outros que poderia acrescentar) apenas fazem sentido para quem viveu aquelas épocas.


Numa coisa o meu caro anónimo tem razão. A frase proferida pelo meu vizinho de mesa faz muito mais sentido e é muito mais inteligente, acutilante e crítica do que quaisquer teorias sobre os fenómenos metafísicos subjacentes ao futebol que eu tivesse a veleidade de tentar explicar.

Mas, o que quer, isso já tem a ver com as minhas próprias fraquezas e insuficiências!

Os melhores cumprimentos.

Anónimo disse...

Não duvido o que era o país nessa altura. O que digo é que não me pareceu, pela acutilância da frase, que o senhor estivesse preso a essa cultura, tal como o senhor Demascarenhas não parece estar.