quarta-feira, outubro 21, 2009

Pregões


Ontem tive que me deslocar ao Porto e, deixem-me que lhes diga, não podia ter escolhido melhor dia para viajar. Apanhei chuva intensa todo o caminho, para lá e para cá, ventos fortes e vários acidentes graves. Um mimo para andar na estrada.


Durante a viagem e embora com toda a atenção que a condução exigia, o meu espírito foi divagando. Vá lá saber-se porquê (o tempo estava agreste e cheguei a ter frio), fui lembrar-me de gelados. E, claro está, não pude deixar de recordar outros tempos quando a alternativa, em termos de sabores, aos gelados de chocolate, de morango e de baunilha eram precisamente o chocolate, o morango e a baunilha.


Nessa época só se comia gelados no Verão e o sítio mais apropriado para o fazer era, naturalmente, a praia, depois de um belo banho de mar, de preferência daqueles em que os “banheiros” nos davam uns quantos mergulhos (que nós detestávamos) que eram obrigatórios porque os nossos papás acreditavam que os tais mergulhos nos protegeriam de várias maleitas, nomeadamente ao nível das vias respiratórias.


E quando o pregão do homem dos gelados irrompia pelos ares enchendo a praia, os nossos corações de crianças ficavam naturalmente sobressaltados.


“Olha o gelado fresquinho”, ou


“Fruta ou chocolate”, ou ainda


“Rajá fresquinhoooooooooo! olha o Rajá”


Rajá, para quem não tem essa memória, era uma das poucas marcas de gelados existentes no mercado da época e que por ser a mais conhecida, levava as pessoas a pedirem um Rajá, ainda que aquela não fosse a marca que estava perante nós ou que o gelado fosse tão artesanal que nem sequer tivesse qualquer marca.


Mas o pregão do vendedor dos gelados era, nesse tempo, tão aliciante, tão saborosamente desejado por miúdos e graúdos como os anúncios, também eles apelativos, de


“Bolos, olha os bolos fresquinhos”, ou


“Bola de Berlim, olha o Pastel de Nata”


Bolos que saíam do interior de caixas de folha branca, que os vendedores carregavam penosamente sobre a areia, muitas vezes demasiado quente, e quase sempre em equilíbrios instáveis sobre as cabeças.


Um outro pregão que desatinava toda a gente era


“Língua da sogra, olha a língua da sogra estaladiça”


Para muitos, a “língua da sogra” que se vendia na praia, era a única coisa boa que existia, em termos de sogra. Mas o que era, afinal? Era, ao fim e ao cabo, uma massa que faz lembrar a do actual cone de gelado mas redonda e menos dura.


O vendedor trazia a tiracolo uma caixa vermelha cilíndrica e de dentro dela tirava a quantidade de unidades que eram pedidas pelos clientes. Algumas dessas caixas tinham uma particularidade. Na parte exterior da tampa havia uma espécie de roleta, que o comprador fazia girar e cujo resultado determinava o número de “línguas da sogra” a que teria direito.


Outros tempos. Tempos em que o marketing e a publicidade eram substituídos pela ingenuidade e pelo capricho dos veraneantes e onde não havia sequer estudos de mercado. Outros tempos em que os vendedores de praia nem sequer necessitavam gritar


“Chora, chora, que o papá compra!”


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