sexta-feira, outubro 19, 2007

Um homem dentro de um carro


Provavelmente já me tinha apercebido da situação, mas, confesso, que não lhe atribuí grande importância. A minha mulher (nestas coisas as mulheres são mais atentas), chamou-me a atenção de que havia na rua um homem que estava todos os dias, e uma boa parte do dia, encafuado no automóvel, a fazer, aparentemente, nada e, isso, não era normal.

Comecei, então, a prestar mais atenção ao facto e, na verdade, constatei que o senhor, homem dos seus sessenta e muitos, setenta anos, estava sentado no banco do condutor todo o santo dia, independentemente do calor que, em certas alturas, deveria ser intenso.

O senhor, de cabelo totalmente grisalho, tinha bom aspecto e vestia, por norma, camisa às riscas com os dois primeiros botões de cima desapertados. Parecia estar confortavelmente sentado e o seu braço esquerdo repousava invariavelmente na janela aberta.

Uma das vezes surpreendi-o a sair do carro para vestir um pulóver mas imediatamente voltou à sua posição de sempre. Sentado, olhando em frente e com o braço assente na janela aberta.

O que me intrigava, e à minha mulher também, era o que é que ele ali estava a fazer horas e horas.

A primeira coisa que me ocorreu é que ele ia para dentro do carro porque queria ouvir os relatos de futebol, coisa que em casa já o teriam proibido. Mas, pensando bem, aos dias de semana, sobretudo de manhã e à tarde, não há relatos de futebol.

Depois, pensei que ele poderia muito bem ser um apaixonado por música erudita. Embora não me parecesse assim à primeira vista que ele pudesse gostar assim tanto de música clássica, enfim, quem vê caras ... Mas não, quem gosta verdadeiramente de música, sobretudo da clássica, gosta de ouvi-la bem alta, como se estivesse no meio da orquestra ou junto do instrumento que toca a solo. Não, a expressão dele não mostrava nenhum prazer especial e, por outro lado, não se ouvia um som que fosse, saindo da janela que estava aberta e onde ele pousava o braço.

Conjecturei, então, que a sua casa fosse pequena e que, porventura, a sogra os tivesse vindo visitar, e ele para que a esposa e a mãe pudessem pôr a conversa em dia, saísse delicadamente para as deixar à vontade.

Havia ainda a possibilidade de ele viver sozinho e, face á solidão, tivesse optado por passar os dias no carro para se distrair com as pessoas que passavam e com o movimento da rua.

De vez em quando, deixava os meus afazeres caseiros e vinha “cuscar” o homem, saber se havia alguma novidade, mas o que eu queria, sobretudo, era tentar desvendar porque razão ele permanecia ali enclausurado sem motivo aparente.

Cheguei mesmo a desconfiar que ele estava a espiar alguém ou alguma casa. Disparate, tratei logo de afastar essa ideia, se bem que, de facto, isso até podia acontecer ...

Até que, desesperado por não ter conseguido ainda arranjar uma justificação minimamente aceitável, achei que, no mínimo, poderia concluir que o homem estava dentro do carro tantas horas seguidas, de janela aberta e com braço ali pousado, apenas, apenas e só, porque amava o seu carro acima de tudo e o seu prazer máximo era o de estar simplesmente sentado no seu interior.

Uma análise demasiado simplista? Talvez, mas a verdade é que acabei de espreitar para a rua, e lá está ele. O homem continua dentro do carro, olhando em frente e sempre com o braço esquerdo pousado na janela totalmente aberta!



5 comentários:

Anónimo disse...

Com tanta curiosidade , também minha, o que achas de lhe perguntar, talvez esteja só à espera que alguém lhe pergunte porque !

Anónimo disse...

Curioso comentarista, bem vindo ao clube dos curiosos. Realmente porque é que eu não me lembrei disso antes? Porque é que não fui lá directamente perguntar-lhe as razões que o levavam a estar horas e horas, dias e dias dentro do carro e, pior ainda, com o braço pousado na janela aberta? Se calhar não fui porque tive receio que ele me mandasse a algum sítio ... Ou então, porque estava (e estou) muito curioso em saber como é que o meu Benfica vai recuperar aqueles pontos todos ao Porto para ganhar o campeonato. Curiosamente, não falei no Sporting, pois não?

Porcos no Espaço disse...

Não acredito que li este texto todo, num crescendo de curiosidade, e no fim tu também não sabes o que raio está o homem ali a fazer!

zeboma disse...

Realmente, este post é um autêntico "teaser", tal como fazem nas novelas a cena final cheia de suspense.. para nos cativar para o dia seguinte. Por isso não espero menos de si, do que dar-nos o próximo episódio em breve!...

(boa sorte com a abordagem ao sujeito)

Anónimo disse...

Mas afinal estás com medo de quê?
Pergunta lá, diz-se que perguntar não ofende! Afinal neste inicio de semana o homem deve ter voltado ao "trabalho" ou então está de baixa ou pior foi reformado compulsivamente por uma qualquer junta médica da adse.

Lembrei-me agora de um caso de uma funcionária publica que tendo doença grave, diagnosticada e relatada formalmente, trabalhou nos últimos anos entre 9 e 11 meses por ano, pelo que numa daquelas juntas médicas que, todos sabemos, quer pôr cancerosos a trabalhar (quando em final de Carreira), optou por compulsivamente reformar a funcionária que só tem vinte e poucos anos de descontos, ficando assim a adse com um encargo na pensão de cerca de 200 euros. Assim sim isto é que é poupar no orçamento.

Mais uma mulher que não bastando a malfadada sorte na doença, vê-se com os seus quarenta anos, arredada dos seus meios de subsistência, e que se não tiver família que a ampare será certamente mais um mendigo desta sociedade "justa", "democrática" e "social".