quarta-feira, outubro 26, 2005

Um primeiro balanço

Estão a completar-se dois meses do “Por Linhas Tortas”. Olhando para o que foi feito – os temas, a participação dos amigos e a periodicidade da publicação dos textos – a questão que se me coloca é “será que valeu a pena entrar nesta aventura?”. Considerando os prós e os contras, sou levado a concluir que tem sido bom.
Como afirmei logo no início, propus-me escrever sempre que me desse na gana ou quando os assuntos despertassem a minha atenção. Declarei então que este seria um espaço reservado às minhas opiniões pessoais, aos relatos, aos desabafos, aos estados de alma e onde responderia a eventuais provocações dos que tivessem a paciência de frequentar o blogue (já viram que continuo a recusar escrever blog. Tenho a esperança que, pelo menos, se tenda para o aportuguesamento da palavra que até poderá ser blogue).
Desse ponto de vista, e com o dia a dia, procurei, dentro do espírito enunciado, achar um rumo. Quero intervir, denunciar, alertar os mais adormecidos, criar um espaço cívico, falar de viagens, de poesia. Tudo isso tratado umas vezes em tom mais sério, outras de forma mais bem humorada ou com ironia e, sempre que possível, diversificando os assuntos.
Sinto-me a isso obrigado. Ao fim e ao cabo, aceitei partilhar convosco a minha escrita.
Apesar de tudo, e este tudo é a trabalheira que me dá escrever tantos e (alguns) tão elaborados textos, penso que a experiência tem sido agradável.
Só não sei exactamente qual é a vossa aceitação. Muito embora o meu contador de visitas ao blogue indique cerca de 70 mil presenças nestes dois meses (mentira, não tenho nenhum contador, apenas me apeteceu dizer isto), a verdade é que não têm sido muitos os comentários que fazem. E, quanto a provocações, nada. Estarão, porventura, com medo que eu me zangue e, qual Valentim, saia a terreiro a perguntar
“Afinal, quantos são, quantos são …”
Participem também neste espaço, que é de todos.
Vou ausentar-me uns dias. Encontrar-nos-emos, de novo, lá para o dia 10 de Novembro.
Até breve.

segunda-feira, outubro 24, 2005

A classe média

Ao reler o que publiquei aí há tempos sobre a (hipotética) crise da classe média deu-me um baque. Eu disse que a classe média estava em crise? Disse isso mesmo?

Mas, afinal, qual classe média, se em Portugal foi coisa que nunca existiu? Sabemos apenas que sempre houve os ricos e os pobres mas nunca se sentiu a falta de mais alguém. Se bem que, na minha juventude, na casa dos meus pais, sempre se disse que nós não éramos nem ricos nem, tão pouco pobres, éramos apenas “remediados”. Donde, afinal, para sermos rigorosos, talvez devêssemos considerar não a tal classe média, mas a classe dos “remediados”.

É que isto das classes sociais é basicamente uma questão de mentalidade, muito mais do que de dinheiro. O dinheiro é sempre relativo. Com as mesmas moedas no bolso pode ser-se um príncipe no Rio de Janeiro e um teso em Nova Iorque.

Um pobre está sempre inconformado e nunca se esquece que passou a vida cheio de dificuldades. Mesmo que ganhe o totoloto ou que um tio radicado na Venezuela lhe deixe uma pipa de massa, o pobre nunca abdica do seu estatuto de pobre. Quando muito assume-se como um ... remediado, mas nunca como um rico.

Os ricos podem ser obrigados a comer sardinhas em lata durante todo o mês, que nunca deixam de sentir que vivem num mundo tremendamente diferente e distante do resto da rapaziada.

O que é curioso neste tipo de atitudes, assumida quer por uns, quer por outros, é que nunca ninguém está satisfeito ou tranquilo.
Os pobres passam a vida inteira a reclamar contra o destino e nunca desistem de dizer mal dos endinheirados, muito embora, bem no íntimo, gostassem de estar na sua situação - ter o seu dinheiro, os seus carros e as suas casas.
Os ricos vivem no pânico permanente de perderem a exclusividade do “seu” mundo e do pavor de sentirem que no “seu” restaurante, na mesa ao lado da “sua”, o filho do “seu” jardineiro, emigrado na Alemanha, está a gabarolar-se - entre arrotos e gargalhadas alarves - de pretender comprar o palacete ao lado do “seu”, onde vai espetar dois grandessíssimos e imponentes leões de pedra no portão da entrada.

E porque nunca houve classe média cá no burgo, e porque sempre se gozou este saudável equilíbrio que demorou séculos de História a conquistar, fica-se terrivelmente chateado quando se vê alguém a querer dar nas vistas, sem qualquer vergonha na cara, a dizer-se e a assumir-se como sendo da classe média! Um escândalo. Um escândalo, meus amigos...

Esses tipos não são, nem nunca foram, da classe média. Eles nem sequer são ricos nem pobres, nem o que quer que seja. São, isso sim, tipos que estão muito satisfeitos consigo próprios, orgulhosos por demais da câmara de vídeo que compraram no Jumbo, da camisa Lacoste que é, em si mesma, um símbolo da sua satisfação e das férias que passarem na Eurodisney de Paris com a família.
Levam o tempo a imaginar o que é que podem comprar para aumentar a inveja da vizinhança, mas o único acto de rebeldia de que são capazes é de, quando muito, surripiar um pacote de alcagoitas de um hipermercado.

Este tipo de pessoas da dita “classe média” – os chamados “médios” que, definitivamente, não conseguem chegar a ser classe média – estão completamente satisfeitos com o seu estatuto. Não querem, de todo, ser pobres porque sentiriam vergonha, mas os ricos assustam-nos porque não conseguem perceber que raio valores são aqueles que fazem os ricos passar as férias sentados numa cadeira a ler um livro, enquanto o carro de topo de gama vai ficando dias e dias sem sair da garagem.
Os sonhos dos “médios” são todos iguais e, ainda por cima, são todos estupidamente concretizáveis – ter um apartamento de férias na Marina da Praia da Rocha, um carro novo ao fim de três anos e um emprego como alguma estabilidade para os filhos, se possível num Banco.
Outro dos sonhos dos “médio” é viajar. É vê-los por essa Europa fora, pelo nordeste brasileiro ou por Cuba, sempre acompanhados pela família, a cumprirem escrupulosamente os programas organizados pelas agências de viagem, repetindo incessantemente fotografias a monumentos e panoramas, comprando as mesmas lembranças inúteis de sempre e exibindo a sua imensa felicidade estampada nos rostos por serem exactamente aquilo que são.

E porque os “médios” têm terror à diferença, por pequena que ela seja, acabam infalivelmente por casar com pessoas médias, com quem terão filhos médios e em número médio, para cumprir cabalmente a sua missão cá na terra. Então, poderão morrer felizes e em paz ... e dentro da média, é claro ...

domingo, outubro 23, 2005

Turquia, ainda tão longe

A Turquia moderna é herdeira de milénios de História. Foi a cabeça do Império dos Hititas, do Império Romano do Oriente e do Império Otomano, que se estendeu em África até Marrocos e na Europa até às portas de Viena. É um país que foi, ao longo de séculos, encruzilhada de civilizações.

Há uns anos passei duas semanas de férias na Turquia e para além de ter “bebido” toda aquela riqueza histórica e cultural, senti que a sua população era amistosa e hospitaleira. Não raro, no primeiro encontro, e em simultâneo com o aperto de mão franco, lá vinha a pergunta “De que país é que são?”, feita mais pelo prazer do contacto com pessoas de outras latitudes do que por mera curiosidade. Achei, sinceramente, os turcos acolhedores e amáveis.

Talvez por isso, fiquei muito satisfeito pelo facto da Europa ter aberto recentemente as negociações para a entrada da Turquia na União Europeia. Achei que a esta entrada, ainda que se venha a verificar só daqui a dez ou quinze anos, vai beneficiar o país e os cidadãos.

Claro está que a Turquia tem ainda grandes problemas para resolver antes de entrar para o “clube”. Nomeadamente o problema com os curdos, o não reconhecimento de Chipre e as violações dos direitos humanos. Mas há que reconhecer, porém, que a Turquia fez uma rápida evolução para aderir à União, quer na economia, quer na legislação, quer no funcionamento das instituições democráticas. De resto, num processo de ocidentalização que já existiu quando Mustafá Kemal Ataturk governou o país.

Mas mesmo que os turcos avancem rapidamente e cumpram as exigências impostas pela Europa, o acordo não vai ser fácil. E porquê? Porque os europeus temem os turcos. De acordo com sondagens publicadas recentemente só 35% dos europeus querem que os turcos se juntem à União Europeia. E entre os que têm mais medo, encontram-se países de grande peso no seio da União, como a França, a Áustria e a Alemanha da nova chanceler Ângela Merkel.

Não obstante, a generalidade dos analistas turcos parece acreditar que o seu país poderá dar uma contribuição importante para o significado estratégico do bloco europeu e o mundo empresarial turco também reagiu bem ao início das negociações.

Mas, se a Europa fechar as portas à Turquia, poder-se-á perder a ponte que permita o diálogo entre o Ocidente e o mundo muçulmano e estar-se-á, porventura, a empurrar os turcos para se juntarem às fileiras dos fanáticos muçulmanos que pretendem, por qualquer meio, derrubar a civilização ocidental. E é bom não esquecer que o fundamentalismo muçulmano turco, embora ainda minoritário, é extraordinariamente activo e está bem posicionado junto dos órgãos da Administração.
Mas, para além isso, a Europa estará a fechar a porta a um mercado de 70 milhões de pessoas.

quinta-feira, outubro 20, 2005

Desigualdade

Comemorou-se na última segunda-feira o Dia Mundial Para a Erradicação da Pobreza.
Segundo os dados já revelados, Portugal é o país da União Europeia onde há mais desigualdade entre ricos e pobres, onde os ricos são os mais ricos e os pobres os mais pobres, característica, de resto, comum aos estados em vias de desenvolvimento.

O problema da desigualdade é tão chocante que basta ver que as 100 maiores fortunas portuguesas representam 17% do Produto Interno Bruto e 20% dos mais ricos controlam 45,9% do rendimento nacional.

E o que é mais confrangedor ainda é que, apesar de todos saberem que esta desigualdade existe (com um fosso que tem aumentado nos últimos anos), parece haver uma grande apatia da sociedade (de todos nós, portanto) relativamente a esta desigualdade e à pobreza em particular.

Pese embora alguma preocupação social manifestada ao nível de medidas tomadas pelo actual governo, o facto é que o discurso político, de uma maneira geral, está mais preocupado com a redução do deficit do que, propriamente, com a situação da enorme injustiça que separa cidadãos de primeira (poucos) de cidadãos de segunda (a maioria)

As estatísticas indicam que um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza. Mas a realidade da pobreza em Portugal é ainda pior. Porque pobreza não é apenas a falta de dinheiro, é também a falta de acesso às necessidades que conferem dignidade à população.

No nosso país existem dois milhões de pobres e dez por cento da população vive com menos de 60 por cento do ordenado médio nacional.

E este problema não deveria resolver-se apenas com recurso às Instituições Particulares de Segurança Social ou às Misericórdias. Os problemas da pobreza são estruturais e por isso merecedores de resoluções que não passem tão somente por pequenas acções de cosmética ou soluções meramente pontuais.
Desde que Portugal entrou para a Comunidade Europeia, temos assistido ao gasto de milhões e milhões e continuamos praticamente na mesma. Se calhar pior. Há cada vez mais pobres e cada vez há problemas mais graves.
É, pois, absolutamente necessário que o país, de uma vez por todas, acorde (mas acorde mesmo) e actue de forma eficaz para conseguir erradicar a pobreza. Um país que se mostre solidário e justo.

Preferências


Dias depois de se terem realizado as eleições autárquicas de 9 de Outubro, dei de caras com um cartaz (eu sei que estavam à espera que escrevesse “outdoor”, mas enganaram-se) do candidato de um dos partidos concorrentes à Câmara Municipal da Amadora.
É claro que o cartaz já lá estava há mais de um mês e que todos os dias eu olhava para ele.
Só que, naquele dia, no mesmíssimo sítio onde o tal candidato afirmava "que o melhor da terra eram sempre as pessoas", o cartaz tinha uma tira de papel colada na parte de baixo, onde se podia ler:
“Obrigado Amadorenses”

O agradecimento deveu-se, naturalmente, ao facto do candidato ter sido eleito Presidente da Câmara. Vá lá, teve um gesto de boa educação e eu gosto de pessoas educadas.
Mas aquela frase teve o condão de me irritar. Não gostei que me chamassem “amadorense”. Sei lá, podiam-me chamar outra coisa, não sei. Até agora nunca tinha pensado que eu também era aquilo (isto é, amadorense).

Ao fim e ao cabo, é capaz de não ser assim tão mau como isso. Até porque os habitantes da maioria das nossas terras também são qualquer coisa em “enses”. São os figueirenses, os portuenses, os setubalenses, os farenses, os lacobrigenses, os leirienses, os calipolenses e outros que tais.
Se calhar até é por isso que eu gostaria de ser uma outra coisa que não “enses”, por exemplo, ser lisboeta ou escalabitano.

Bem, mas pensando melhor, prefiro ser um “amadorense” do que ser um “porcalhoto” (que não tem ense) que, provavelmente, seria a designação que seria atribuída aos habitantes da Porcalhota, que foi, como se sabe, a povoação que deu origem à actual Amadora.

Apesar de tudo, e mesmo não gostando, prefiro ser um “amadorense” do que um “gondomarense” ou um “felgueirense” e está-se mesmo a ver porquê, não “tá-se”?

quarta-feira, outubro 19, 2005

Orçamento de Rigor

Título da 1ª Página do “Correio da Manhã” de ontem, dia 18 de Outubro

“Orçamento de Estado Ataca Pensões”

Que o orçamento para 2006 ia ser de rigor já o sabíamos, o governo do Engenheiro Sócrates já o tinha anunciado. O estado a que chegaram as contas públicas é de tal maneira lamentável que não restava grande alternativa a qualquer governo decente, que não fosse o de ser rigoroso com um orçamento de verdade e sem malabarismos financeiros. Portanto, ainda que isso nos afecte as carteiras, venha o tal orçamento de rigor e de transparência, que eu aplaudo.
Mas, senhor primeiro-ministro e senhor ministro das finanças, o orçamento prever o ataque às pensões, aí já não posso estar mais em desacordo.

Ao fim e ao cabo, razões terão os partidos da oposição à esquerda do PS, quando dizem que o governo penaliza sempre os trabalhadores e que é incapaz de se meter com o grande capital, nomeadamente com a Banca (bom, face às notícias que vieram ontem a público sobre a investigação que está ser levada a cabo pela Polícia Judiciária e pela Direcção Geral dos Impostos, precisamente a grandes grupos financeiros, já não sei não).
E, as razões apresentadas por esses partidos, acabam por estar, afinal, retratadas no título do Correio da Manhã “Orçamento de Estado Ataca Pensões”

Mas, pergunto, porquê o ataque às Pensões? E porque não às Residenciais? E porque não às Albergarias? E porque não aos Hotéis?

São sempre os mesmos a pagarem a crise!

segunda-feira, outubro 17, 2005

Jogadas


Já passaram dois dias e ainda não consegui compreender porque é que no jogo do FC do Porto com o Benfica, o Nuno Gomes levou uma grandessíssima cabeçada daquele defesa do FCP que, ao que parece, se chama Bruno Alves. Será que o Bruno pensava que "jogar com a cabeça" era dar cabeçadas noutro jogador?
Pus-me a pensar e, das duas quatro. Bruno, ou tu és mesmo muito mau, mau como as cobras, o que não acredito, muito embora aquela cabeçada já fosse a tua segunda agressão só naquele jogo; ou andas a precisar de óculos e não conseguiste distinguir entre a bola e a cabeça do Nuno Gomes, que, por acaso, até nem se parecem porque a cabeça do Nuno é mais bonitinha; ou, finalmente, não conheces mesmo nada das leis do jogo e, nesse caso, tens que aprendê-las se queres continuar a jogar futebol.
Assim é que não, Bruno, senão ainda corres o risco de um dia destes, quando entrares em campo, alguém gritar: “É um g’anda jogador este Bruto Alves”.

domingo, outubro 16, 2005

Objectivo ou Obsessão?

No mundo das empresas como na vida, nem sempre é fácil definir objectivos. E, se calhar por não ser fácil é que, neste momento em Portugal, muita gente anda preocupada com a obtenção de dois objectivos que considera ser essenciais para o nosso bem-estar:

- o primeiro, sobretudo alimentado (e de que maneira) pela imprensa, era o de saber quando é que o Pedro Pauleta era capaz de ultrapassar o número de golos marcados pelo Eusébio ao serviço da Selecção Nacional de Futebol. Bem, esse problema foi ultrapassado recentemente mas, a minha dúvida mantém-se. Será que era assim tão importante o Pauleta marcar mais golos do que o Eusébio? Quem foi o cérebro que definiu esse objectivo? Que Pauleta marque muitos golos em cada jogo que faz, acho óptimo. A ele deve dar-lhe uma grande gozo, à Selecção pode significar que a equipa sempre vai ganhando, mas, para os portugueses, o que é que isso adianta?
Desculpem lá, mas ter como objectivo ultrapassar o recorde dos 41 golos do Eusébio parece-me, francamente um bocadinho de menos.
Afinal, seria objectivo ou obsessão?

- o segundo objectivo tem a ver com os candidatos presidenciais de esquerda já conhecidos. Como é público, todos eles dizem concorrer para derrotar Cavaco Silva, para derrotar a direita.
Para já, e que eu saiba, Cavaco até pode ser apoiado pelos partidos de direita mas ele não é, de facto, de direita. Depois porque acho uma ideia peregrina alguém se candidatar à Presidência da República apenas com o objectivo de derrotar a direita e não por uma razão mais válida. Sei lá, por exemplo, por Portugal, pelos portugueses, pela moralização da vida pública e dos partidos políticos, para constituir um factor agregador da sociedade. Mas, apenas para derrotar a direita? Não será um pouco redutor?
Afinal, será objectivo ou obsessão?

Quando os objectivos são mal definidos ou mal explicados, os resultados ou não têm interesse ou não são lá grande coisa. O que, muitas vezes, nos faz questionar se serão realmente objectivos ou tão-somente obsessões?

quinta-feira, outubro 13, 2005

O Zé Povinho

Sou capaz de jurar que todos conhecem a figura do Zé Povinho. Quem não deu já de caras com aquela pujante figura que usa o manguito como expressão corporal? Aquele que, de calças remendadas e botas rotas, é a eterna vítima dos partidos, e do poder em geral, dando a vitória a uns e a outros em épocas eleitorais. Como aconteceu, de resto, na última semana.
Mas já não tenho a mesma certeza quanto a saberem quem foi o seu autor.
Pois o criador desta figura-símbolo do povo português foi Rafael Bordalo Pinheiro.
Raphael Augusto Bordallo Prestes Pinheiro, de seu nome, nasceu em Lisboa, em 21 de Março de 1846. Foi uma figura marcante da cultura portuguesa da segunda metade do século dezanove e distinguiu-se – apenas - como desenhador, aguarelista, caricaturista político e social, jornalista, ilustrador, ceramista, actor e professor. A sua genialidade única, atravessou todas estas especialidades e, apesar de ter morrido no início do século vinte, a actualidade da sua obra faz com que seja intemporal.
Começou a fazer caricatura por brincadeira. Ilustrou e compôs desenhos para almanaques, anúncios e revistas estrangeiras e para largas dezenas de livros e publicações. Foi percursor do cartaz artístico em Portugal.
Caricaturista também no barro, deu forma a notáveis figuras como o sacristão, o padre, o polícia, a ama de leite e o genial "Zé Povinho" ao lado de quem colocou a inseparável Maria da Paciência, velha alfacinha alcoviteira.
E, quando lhe perguntavam onde tinha aprendido as artes, respondia:

"Nunca cursei academias. Tenho o curso da Rua do Ouvidor...Cinco anos. Canto de ouvido"

No entanto, Rafael matriculou-se sucessivamente na Academia de Belas-Artes (desenho de arquitectura civil, desenho antigo e modelo vivo), no Curso Superior de Letras e na Escola de Arte Dramática, para logo de seguida, e sempre, desistir.
Por ser avesso a qualquer disciplina, apaixonou-se antes pelo lado boémio da vida lisboeta e estreou-se como actor no Teatro Garrett e no luxuoso Theatro Thalia, na costa do Castelo.
Mas o riso era, de facto, a vocação de Rafael Bordalo Pinheiro. Com o traço irreverente e satírico constrói uma galeria de figurões políticos e financeiros, intervindo decisivamente na demolição das estruturas caducas duma monarquia decadente e na rápida ascensão e propagação dos ideais republicanos.
Mas, muito mais interessante do que esta breve evocação, será admirar a obra deste grande e genial mestre, irmão do pintor Columbano, que pode ser apreciada no Museu Bordalo Pinheiro, onde é possível ter uma visão retrospectiva do seu brilhante trabalho gráfico e cerâmico.
Rafael Bordalo Pinheiro foi um artista empreendedor e multifacetado que reflectiu quase sempre de forma crítica o quotidiano cultural, político e social da época em que viveu.
Mas o que é muito curioso observar é que podemos descobrir nas suas críticas uma tal actualidade que parecem ter sido feitas, à medida, para a sociedade de hoje. Lá estão os temas como o défice, a insegurança e a corrupção. Lá encontramos, por exemplo, figuras e figurões como os políticos desonestos e os troca-tintas.
Pena foi que o boémio incorrigível em que se tornou, sempre de olhos maliciosos a cintilar por entre o monóculo, ter tido uma vida tão curta, porém atribulada.
Uma visita a não perder.
Museu Bordalo Pinheiro
Campo Grande, 382, em Lisboa – 3ªs a Domingo das 10h00 às 18h00
Encerra às 2ªs e feriados

terça-feira, outubro 11, 2005

Conversas de miúdos

Há dias, ao sair de casa, dei de caras com um casalinho de miúdos que caminhava pelo passeio, de mãos dadas. Eram giríssimos os dois, teriam à volta de sete, oito anos, mas percebia-se pela sua desenvoltura que eram desenrascados (perdoem-me o plebeísmo). E, muito senhores do seu papel, iam conversando animadamente.

Alguém que os conhecia bem, acercou-se deles e perguntou-lhes onde iam passear. Os miúdos responderam a isso e a uma série de outras perguntas, daquelas que os adultos costumam fazer às crianças há séculos. Confirmaram que eram namorados e, a simpatia deles era tão grande, que levou a que esse alguém lhes fizesse aquela pergunta sacramental que é comum ouvir-se:
“Então e quando crescerem o que é que querem ser?
“Magistrado”, respondeu o rapazinho. “E porquê?”, questionou o mesmo alguém.

O rapaz que, pelos vistos, ouvia tudo o que se passava lá em casa e provavelmente tinha ouvido a indignação dos pais sobre aquela notícia que saíra nos jornais, respondeu num fôlego:
“Ora, porque os magistrados recebem um subsídio de renda de casa de 700 euros por mês, mesmo que residam em casa própria e na sua terra. O mesmo dinheiro que recebem quando estão colocados a centenas de quilómetros. E quando um dia eu estiver reformado, eles (o miúdo sabia que eles era o governo) incluem esse subsídio na reforma. E, ainda por cima, esse subsídio não conta para o IRS”.
“Mas, como é que tu sabes essas coisas?”, perguntou o alguém, deveras admirado.
“Ouvi, pronto”, volveu o rapaz, acrescentando: “E ouvi também que se eu trabalhar no Supremo Tribunal Administrativo ou no Tribunal Constitucional e morar fora da área da Grande Lisboa, além dos 700 euros, eles ainda me pagam ajudas de custo por cada dia de sessão nos respectivos tribunais. E mais, para ir trabalhar ainda vou ter viagens totalmente gratuitas em todos os transportes públicos terrestres e fluviais, incluindo os comboios Alfa”.

O alguém estava completamente aparvalhado. Isto é, estava ele e estava eu que também tinha ouvido a conversa. No meu caso, porém, não percebia bem se a minha estupefacção era devido às benesses atribuídas (incompreensivelmente) aos magistrados, se à esperteza daquele miúdo que desfiava tão bem toda aquela prosa, cujo significado ele (neste caso o miúdo), por certo, não devia compreender totalmente.

“E tu, querida, o que é queres ser quando fores grande?”, perguntou o alguém.
Ela, agarrou a mão do companheiro com mais força, sorriu para o alguém e respondeu:
“Como eu gosto muito dele, quero casar com ele e quero ser, também, magistrada”
“E magistrada porquê? voltou a perguntar o alguém.
“Porque, assim, eles também me dão 700,00 euros para a renda de casa e podemos, os dois, sacar 1400,00 euros, percebes?”

Não me recordo de mais nada. Quando acordei estava deitado numa marquesa e, segundo me disseram, estava branco como a cal das paredes …

domingo, outubro 09, 2005

Ganhámos

Neste último fim-de-semana fomos chamados a exercer o nosso dever cívico, isto é, fomos votar nos candidatos que mais mereceram a nossa confiança, aqueles que, ao fim e ao cabo, nos pareceram ser os mais aptos para dirigir e controlar os destinos das nossas autarquias.

Isto, muito embora a maioria deles, para além do voluntarismo e da boa vontade, não terem a mínima ideia sobre o que é, de facto, a gestão autárquica.
Naturalmente que todos os candidatos deveriam ter conhecimentos (pelo menos mínimos) de planeamento estratégico, de associativismo intermunicipal, de controlo orçamental, de conhecimento nas áreas sociais, culturais, ambientais e de ordenação do território.
Mas, enfim, sabemos todos que temos os candidatos que temos e, sabemos também, que a maioria deles é proveniente dos partidos que regem e dominam o sistema.
Bom, nós fizemos a nossa parte, votámos e, por isso, ganhámos.

Quanto aos partidos políticos, também ganharam todos. Ou se não ganharam, consolidaram ou reforçaram as suas posições nas Câmaras, nas Freguesias e nas Assembleias Municipais. Todos são vencedores, como de costume.

Mas ganharam também os independentes. Aqueles que à revelia dos respectivos partidos se candidataram e levaram de vencida os candidatos desses mesmos partidos. Todos eles, à excepção de Avelino Ferreira Torres em Amarante. Aí quem ganhou foi o bom senso e a democracia.

E ganhou também a abstenção que, em certos municípios, chegou a ultrapassar os 50%


Mas se pensaram que eu me dispunha a fazer análise política às eleições de ontem, tirem o cavalinho da chuva. Não é isso que me interessa neste momento.
Não, não é destes ganhos e destes ganhadores que vos vim falar. Hoje, gostaria antes de realçar a vitória da Selecção Portuguesa de Futebol sobre a selecção do Liechtenstein, que permitiu a nossa classificação para o Mundial da Alemanha de 2006.
E levou a cabo esse feito fazendo um jogo com uma equipa classificada para além do centésimo lugar na tabela da UEFA. Num jogo de baixíssima qualidade, de uma alta percentagem de passes mal executados, de malabarismos individualistas despropositados (lembro que este é um jogo de equipa) e de apostas duvidosas em jogadores sem ritmo competitivo e que não actuam nos seus respectivos clubes. Para além da elevada taxa de não concretização e de uma grande penalidade falhada, este foi um jogo em que quase tudo aconteceu, até um frango que, ainda por cima, se encaixou na nossa baliza.

Mas, afinal, o que interessa tudo isso quando o resultado acabou por ser uma vitória das nossas cores que, para mais, permitiu a classificação da nossa Selecção para a Alemanha?
Portanto, o que vale verdadeiramente é que ganhámos.

quinta-feira, outubro 06, 2005

Ai como tudo isto anda viciado

Sempre que posso, gosto de ver e ouvir o programa “O Eixo do Mal” na SIC Notícias. É um programa cheio de ironia, de maledicência também e de muita crítica ao que se vai passando no mundo, mas especialmente cá pelo burgo. E, a brincar, a brincar, vão-se dizendo coisas bastantes sérias.
Bom, mas falo nisto para dizer que num dos últimos programas, quando se discutia um qualquer assunto que já não recordo o tema, um dos participantes argumentou:
“É por isso que os jornais e revistas da especialidade nunca dizem mal dos carros quando são lançados modelos novos”.

O assunto ficou por ali mas fiquei a pensar na frase. É que, muito recentemente, comprei carro novo e no dia em que fui escolher a cor do automóvel, ao passar por uma das dependências do representante da marca, vi uma placa a indicar “Parque da Imprensa”.

Perguntei ao vendedor que me acompanhava que espaço era aquele e ele, num repente e sem qualquer relutância, esclareceu-me que era o parque onde ficavam estacionados os carros destinados à imprensa.

“Que carros?”, questionei. Respondeu que eram os modelos acabados de lançar e que a marca põe à disposição dos jornalistas da especialidade para eles passarem fins-de-semana e férias.

“E porque cedem os carros?”, voltei a perguntar. A resposta veio envolta num misto de indignação e de surpresa pela minha ignorância.
“Para que não digam mal dos nossos carros”, ao que acrescentou “Aí há tempos, tivemos um problema porque a Administração entendeu não ceder um carro a determinada pessoa e ela, no seu jornal, fez-nos a vida negra durante meses a fio, sempre a colocar defeitos no carro.

Realmente andava muito distraído. Como é que eu fui achar normal que todos os artigos publicados sobre carros novos, fossem unânimes em dizer que esses carros, todos eles, são os melhores do mundo.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Assim não, Senhor Engenheiro

Ao contrário do que prometeu, que era criar uns milhares de postos de trabalho, o senhor engenheiro Sócrates enveredou pelo ataque cerrado, sistemático e injustificado aos pobres trabalhadores, levando muitos deles ao desemprego.

Foi exactamente o que aconteceu a um humilde empregado da Refer (empresa pública criada para gerir a infra-estrutura da rede ferroviária nacional), por acaso seu presidente, o Dr. Luís Braamcamp Sobral.
Braamcamp Sobral, até há pouco tempo para além de presidente da Refer, e porque o seu vencimento não dava para grandes coisas era, ainda e em acumulação, presidente da Rave, responsável pela futura rede de alta velocidade (apesar do projecto do TGV não estar, ainda, definido). Ou seja, era um bi-Presidente que tinha direito a dois ordenados.

E era um Presidente à séria, ao que sabemos. Muito embora no ano passado a Refer tivesse apresentado prejuízos da ordem dos 150 milhões de euros, e a Rave tivesse tido, também, resultados negativos, o que importa aqui salientar é que o Senhor Presidente, apesar desses maus resultados, conseguiu pagar prémios de "produtividade" a 540 dos mais de 5 mil trabalhadores, no valor de 600 mil euros. E, para os colaboradores próximos, o prémio de "produtividade" foi para cada um superior a 5 mil euros.

Sempre defendi que a boa gestão deve ser recompensada. E, neste caso, parece evidente que houve uma excelente gestão, pois mesmo tendo em conta que estas empresas tiveram défices tão significativos, mesmo assim, o homem, perdão o Senhor Presidente, ainda arranjou umas massas para premiar “os que conseguiram ser mais produtivos”.

Mas Braamcamp Sobral fez muito mais. Sob a sua gestão, admitiu, na Refer e na Rave, mais de 200 pessoas, muitas das quais amigos e colaboradores do ex-ministro da tutela, António Mexia, e de Carmona Rodrigues. Esta medida, a de criar mais de duzentos novos postos de trabalho, deveria ser citada por si, Sr. Engenheiro, como um bom exemplo de criatividade empresarial.

Perante isto, Senhor Engº. Sócrates, vai mandar o ex-bi-presidente para o desemprego? Assim, do pé para a mão?

Entretanto, alguém me confidenciou que Braamcamp Sobral, sendo um homem previdente, arranjou maneira de não ir para o desemprego. Com um grupo de personalidades (de que faz parte) que ocupa lugares nos conselhos de gestão de várias empresas públicas (Refer, CP, Metro...) fez contratações cruzadas (numa fantástica troca de cadeiras...), pelo que agora estão em condições de ocupar as prateleiras de luxo que inventaram para si próprios.
Desta forma, o presidente da Refer e da Rave, o Dr. Braamcamp Sobral, foi contratado pela CP, como assessor da administração, tendo acordado um ordenado de 4.700 euros, a que acrescem 995 euros para despesas de representação. Nada mal!

Bem, agora falando a sério. Resta-me dizer que toda esta aldrabice poderá não ficar assim. FELIZMENTE.
É que a Inspecção-Geral de Finanças, que já detectara a situação durante a vigência do anterior governo, propôs a exoneração dos membros dos conselhos de gestão das empresas públicas que se envolveram nestas manobras.
Até o magistrado do Ministério Público, que exerce as funções de auditor jurídico do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, não teve dúvidas em considerar, há dias, que "foram seriamente atingidas a credibilidade, o prestígio, a boa imagem e a fé pública da administração e das instituições públicas", pelo que, em sua opinião, se verifica "a existência de fundamento válido para a hipótese de exoneração das pessoas em apreço sem direito à percepção de qualquer indemnização".

Vamos ver o que isto dá …

segunda-feira, outubro 03, 2005

Contra sons não há argumentos

O comentário do “pródigo” à “história do pinguim e do sapo”, quando dizia que “Flato, não fosse o seu significado, até que soaria bem” fez-me lembrar uma outra história acontecida há uns largos anos, numa aldeola bem perto de Lisboa.

E a história tem a ver com um padre alemão que estava há pouco tempo em Portugal. Esse padre quase não falava a nossa língua, conhecia apenas uma ou outra palavra. No entanto, havia uma que ele conhecia e que usava com alguma frequência: “merda”.

Quando percebemos que pronunciava a dita palavra mais do que devia, chamámos a atenção dele para o seu significado, aconselhando-o:
“Padre, não deve dizer essa palavra. É muito feia, é calão …”

Depois de reflectir um pouco, o padre soltou uma gargalhada contagiante e respondeu:
“Ummmm, merda, está bem, está bem, já percebi … merda pode ser uma palavra feia, pode até ser calão, mas soa tão bem”.

sábado, outubro 01, 2005

Porque hoje é sábado

Porque hoje se completa o primeiro mês de existência do “Por Linhas Tortas”,
porque sempre gostei destes versos e deste poeta,
e, também, porque hoje é sábado,
aqui vos deixo o belíssimo poema “O dia da Criação” de Vinicius de Morais

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espectáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado
do Livro das Origens, o Sexto Dia da Criação.
De facto, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas
cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil,
imposto sobre a renda e missa de sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das
terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, frequentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até
praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.