Depois de, na sexta-feira 19 de Outubro, há pouco mais de duas semanas, ter aqui publicado um texto absolutamente inocente e que eu julgava que não tivesse qualquer tipo de sequência, ou seja, que a “história” acabasse nesse mesmo dia, o certo é que me enganei redondamente e “fui obrigado” a dar andamento àquele pedaço de prosa, o que, confesso, nunca me passara pela cabeça.
Mas, de facto, depois de um primeiro, houve um segundo texto e apercebi-me que se não conseguisse arrepiar caminho imediatamente estaria em vias de transformar um blogue despretensioso, que eu sempre imaginara estar destinado a receber umas inócuas e despretensiosas crónicas, num pseudo livro de ficção, de espionagem, de terror, policial, eu sei lá que mais, sem sequer poder imaginar onde é que tudo isto iria terminar.
Pelo que, decidi que seria melhor dizer-vos já o que sei sobre o assunto - e sei muito pouco, acreditem – para não vos deixar a “secar” semanas após semanas, sei lá até onde, na tentativa de vos enredar numa intriga, de onde dificilmente conseguiriam escapar e que nos ocuparia o nosso tão precioso tempo, quiçá durante alguns meses.
Eu sei que alguns companheiros nossos, tinham já engendrado uma belíssima e ardilosa trama, sem dúvida muito mais conseguida do que aquela que o próprio autor poderia vir a ter alguma vez a coragem e a imaginação de arquitectar. Por isso, parabéns a todos eles. Mas, a verdade, é que eu não fui tão longe, limitei-me, apenas, a relatar factos (que poderão ter alguma ficção à mistura) que, aparentemente, se poderiam interligar, e que, provavelmente lançaram eventuais e infundadas suspeitas, se calhar completamente desprovidas de fundamentação. Foram, afinal, os meus amigos que, à falta de programas de televisão mais interessantes, começaram a ficar curiosos e a pensar que, por detrás dos tais simples factos que se relatavam, existia um complexo enredo, quiçá intencional e, com toda a certeza, com ramificações internacionais.
Mas não, a verdade é que, e “há sempre uma explicação para tudo”, como gosta de dizer a minha mulher, neste caso, não há muito para contar, nem existe sequer uma intriga digna desse nome que venha criar um interesse acrescido ao “Por Linhas Tortas”, capaz, eventualmente, de suscitar um número recorde de comentários.
Então, ao certo, o que é que temos para contar? Vamos por partes...
Em primeiro lugar, o pensamento, aliás plausível, de que estaríamos perante um “mistério”, poderia ter sido resultado de uma coincidência invulgar. O apelido do senhor da minha rua e o daquele outro de S. Bernardo do Outeiro era exactamente o mesmo – “do Ó Salgado” – sendo que o primeiro era Manuel e o outro Justino. Um acaso que levantou legítimas expectativas aos leitores, mas que não passou apenas disso mesmo. Um mero acaso.
Depois, o arrepio sentido pelo Justino do Ó também levou algumas pessoas a especular sobre se esse calafrio não seria uma premonição que estivesse associada ao Manuel do Ó Salgado, face ao estranho comportamento deste último e partindo do princípio, também aceitável, de que eles até poderiam ser familiares. Mas não. Ao que parece, tudo teria ficado a dever-se a uma brisa outonal, normalmente bastante fresca na zona de S. Bernardo do Outeiro.
Quanto à Marina, não há muito para dizer. Ela era, melhor, ela é, de facto, uma jovem bonita e vistosa e de lindos cabelos longos e sedosos. Mas tinha uma outra particularidade, era filha de Justino do Ó, Justino esse que era o dono da melhor pastelaria de S. Bernardo do Outeiro, que ele montara justamente para que a filha pudesse ter uma vida mais confortável e com proventos acima dos que as outras moçoilas da região conseguiam.
Marina só tinha vindo à capital uma única vez. Já fora ao Porto umas quantas vezes, a Coimbra também, mas a Lisboa apenas viera uma vez e, por sinal, gostara muito. Tinha gostado da cidade, da sua luminosidade e apreciara muito a visita que fizera ao Castelo de S. Jorge e ao Cristo Rei. Ah!, e adorara os pastéis de Belém, que tratou logo de os vender na sua pastelaria, uma vez assegurado o transporte que levava os pastéis da fábrica de Lisboa directamente para S. Bernardo do Outeiro, todas as semanas.
E tanto gostara de vir à capital que tratou de programar uma outra visita que, desta vez, tinha passagem obrigatória por Mafra, onde pretendia visitar o palácio e o convento, que ela ouvira dizer que tinha sido mandado erigir pelo rei D. João V e que tinha, ao que lhe disseram, nada menos de 4500 portas e janelas.
Houve, porém, um problema. Na data em que a excursão de Marina deveria deslocar-se até Mafra, soube-se que, nessa mesma data, a vila seria visitada pelo presidente da Rússia Vladimir Putine, cujas fortes medidas de segurança poderiam impedir o acesso de particulares à vila de Mafra e, em especial, à zona do Convento.
Por isso, o pai Justino fez uma série de chamadas para a empresa de camionagem, para saber se a excursão sempre se realizaria ou não.
Não me posso esquecer de recordar o meu prestimoso e sempre presente vizinho, o reformado bancário, antigo delegado sindical e ex-revolucionário saudosista, cujas conversas que mantínhamos andavam sempre à volta do mesmo. Ou das últimas fofocas da rua e que ele soubera em primeira mão ou, claro está, dos problemas bancários que ele sempre considerava estarem a ser resolvidos da pior maneira, mas para os quais ele tinha soluções infalíveis.
Pois foi por ele que eu soube que nas últimas semanas tinha havido uma vaga de furtos de viaturas ali na nossa zona e que a coisa estava a ficar preta. A não ser que, e a proposta veio em tom decidido, constituíssemos uma milícia armada, capaz de enfrentar os assaltantes e de acabar de vez com os gagos.
Foi aí que ganhei coragem, não para integrar a tal milícia, mas para dirigir-me directamente ao tal senhor que estava todos os dias encafuado no automóvel, “a fazer, aparentemente, nada” para lhe perguntar, de forma afável e delicada, já se vê, porque razão ele estava lá durante os dias inteiros.
E a resposta, aquela que eu e os meus estimados companheiros, aguardávamos com tanta ansiedade, veio prontamente: “Estou aqui, porque comigo dentro do carro, eles (essa corja que andava a assaltar os automóveis) nem sequer pensarão em aproximar-se.
Obviamente! Ainda que, penso eu, os tais banditórios, não se ensaiassem nada em levar o carro, mesmo com o senhor lá dentro. Mas achei melhor não lhe dizer isto ...
Ficaram por saber duas coisas, mas essas já não tive coragem para perguntar. A primeira, porque razão ele ficara tão zangado quando uma pessoa se aproximou do carro e lhe tocou ao de leve no braço, e, a outra, uma das questões mais fundamentais desta história toda, porque é que ele repousava, invariavelmente, o braço esquerdo na janela aberta do seu carro ...