Depois de uma ausência de muitos anos, fui há dias jantar a uma casa de fados. Devo dizer que, tanto quanto me lembro, não senti grandes alterações desde a última vez que lá estive. A comida é mais ou menos do mesmo tipo, o ambiente idem e os fados, apesar dos novos tempos, continuam a ser os de sempre. Desgraçadinhos, muitos deles de faca e alguidar.
Mas, por que se tratava de um clássico, prestei especial atenção à letra de "Uma Casa Portuguesa", fado celebrizado por Amália Rodrigues nos idos anos 50 do século passado.
Durante décadas foi um fado emblemático que passou muito na rádio. Para além da voz inconfundível de Amália, o Estado Novo utilizou a letra do fado para sugerir ao povo como devia aceitar a pobreza em que se vivia. De uma maneira subliminar fazia-se a apologia da alegria da pobreza e da existência singela para a qual bastava "pão e vinho e um caldo verde, verdinho a fumegar na tigela".
O que nunca me passaria pela cabeça é que tantos anos depois, em liberdade há décadas, a mensagem (actual, de novo) lá estivesse outra vez, embora na voz de outras fadistas. Novamente a ideia de que temos que empobrecer. Novamente o discurso da alegria da pobreza e da existência singela. E, realmente, o que podemos querer mais do que "no conforto pobrezinho do meu lar, há fartura de carinho"? Agradeçam, pois, a sopa e a peçazita de fruta do jantar. E agradeçam, também, o sol, que nos dá ânimo e que, por enquanto, ainda é de borla ...
Para quem já não se lembra aqui estão, na íntegra, os versos de "Uma Casa Portuguesa"
Numa casa portuguesa fica bem,
pão e vinho sobre a mesa.
e se à porta humildemente bate alguém,
senta-se à mesa co'a gente.
Fica bem esta franqueza, fica bem,
que o povo nunca desmente.
A alegria da pobreza
está nesta grande riqueza
de dar, e ficar contente.
Quatro paredes caiadas,
um cheirinho à alecrim,
um cacho de uvas doiradas,
duas rosas num jardim,
um São José de azulejo,
mais o sol da primavera...
uma promessa de beijos...
dois braços à minha espera...
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
No conforto pobrezinho do meu lar,
há fartura de carinho.
e a cortina da janela é o luar,
mais o sol que bate nela...
Basta pouco, poucochinho p'ra alegrar
uma existência singela...
É só amor, pão e vinho
e um caldo verde, verdinho
a fumegar na tigela.
Quatro paredes caiadas,
um cheirinho á alecrim,
um cacho de uvas doiradas,
duas rosas num jardim,
São José de azulejo
mais um sol de primavera...
uma promessa de beijos...
dois braços à minha espera...
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
1 comentário:
Nunca comentei em qualquer blog, mas depois de perusar este, achei bastante interessant atua observacao. De facto, quantas vezes ouvimos letras de fados ou cancoes e realmente nao ouvimos. Concordo inteiramente contigo. E pessoas como eu, membros da comunicacao social nao estamos imunes de falhar tambem no que diz respeito a "realmente ouvir" as letras. Como estou fora de Portugal ha' mais de 50 anos, nao posso dizer com toda a certeza que sei o que se passa ai, mas mantenho-me informada o mais possivel. Lamento sinceramente ao ponto em que o nosso pais chegou. E ele e' nosso, muito nosso. Todos os portugueses devem importar-se com o que se passa no "cantinho 'a beira mar plantado". Acordem portugueses, por favor, antes que o "cantinho" seja "desplantado".
Enviar um comentário