Embora o Carnaval já tenha passado, mas talvez inspirado pelo texto que aqui publiquei às primeiras horas de hoje que falava em Carnaval e em escolas de samba, lembrei-me de um conto escrito por José Eduardo Agualusa a que chamou “Nada a declarar”.
É um belíssimo texto de Agualusa, extraído do seu livro “Passageiros em Trânsito – Novos contos para viajar”, em que o escritor angolano demonstra toda a sua sensibilidade literária, de forma simples e bem-humorada.
Deixo-vos, então, com “Nada a declarar”
“Marina estudou o funcionário. Era um homem cinzento, fatigado, e estava ali como num velório. Mal olhava os viajantes. Perguntava alguma coisa, dobrado sobre o seu próprio tédio, folheava os passaportes, carimbava-os e devolvia-os:
- Tenha uma boa estada.
Quando chegou a sua vez sentiu que lhe tremiam as mãos. Suava. Hesitou entre enfrentá-lo, olhos nos olhos, aparentando segurança, ou, pelo contrário, fingir-se distraída. Estendeu-lhe o passaporte, já aberto na página com a sua fotografia, ao mesmo tempo que remexia nervosamente na carteira.
- A moça é portuguesa?! Pode dizer-me em que se ocupa?
E ela, num sopro:
- Eu? Sou mulata!
Ia acrescentar: “A tempo inteiro”, mas então reparou no espanto do homem e percebeu que trocara as palavras, mulata ao invés de modelo, e não conseguiu dizer mais nada. O funcionário animou-se. Endireitou o tronco. O rosto ganhou um súbito fulgor:
- Estou vendo, muito mulata mesmo ...
Murmurou isto com um ar expressivo, avaliando-a desde os tacões dos sapatos à revolta cabeleira negra, um metro e setenta e sete da mais fina mistura de raças:
- E o que vem a moça fazer ao Rio de Janeiro?
Marina estremeceu. Desembarcara, enfim, no país do Carnaval. A vida inteira esperara por aquele dia. Veio-lhe à memória a imagem de uma menina sambando numa festa de casamento. Os pais, os tios e os primos em redor, todos rindo e aplaudindo. Nunca mais deixara de sambar. Percorria as cidades da província, as vilas remotas, dançando o samba em bares ou festas populares. Volta e meia posava para anúncios de chocolates e marcas de café. Também se vestia de sambista para promover produtos tropicais nos grandes supermercados. Levara cinco anos a poupar dinheiro para aquela viagem.
- Vim ver o Carnaval, claro. Você não gosta de Carnaval?
O funcionário assentiu, feliz:
- E quem não gosta? Seja então bem-vinda, Marina – disse, imitando o sotaque português – Pelo que estou vendo a moça torce pela Mangueira.
Marina trazia uma blusa cor-de-rosa, rendada nos pulsos, e umas calças de um verde-pálido, talvez demasiado justas. Noventa de peito. Sessenta de cintura. Cento e dois de quadris. Aqueles dois centímetros de arrogante desafio às leis da gravidade faziam a diferença em qualquer palco. Rodopiou uns segundos, ali mesmo, diante do espanto divertido dos turistas, deu uns passos curtos, e Deus parou para ver. O funcionário sacudiu a cabeça, perplexo:
- Você é mesmo portuguesa? – O homem disse aquilo com admiração. Não era a dúvida metódica de um polícia de fronteira, era um elogio. – Tem a certeza?...
Marina sorriu com orgulho:
- Sou portuguesa, com certeza! Tão portuguesa quanto o fado, que antes de ser português foi brasileiro. Tão portuguesa quanto a Carmen Miranda, antes de ser brasileira. Tão portuguesa quanto o bacalhau da Noruega. Sou portuguesa do Alto da Cova da Moura!
O brasileiro nunca ouvira falar no Alto da Cova da Moura. Parecia-lhe que havia um desvario algures naquele nome, uma contradição nos termos, mas, ao mesmo tempo, soava-lhe bem, como se fosse o título de um samba-enredo inspirado em lendas árabes. Mil e uma noites. Aladino e o génio da lâmpada. O tapete voador. Algo assim:
- Maravilha! – exclamou. – Deve ser bonito, lá ...
A rapariga hesitou. Bonito? Não podia negar esse consolo a um estrangeiro. Disse-lhe que sim. Acrescentou, para ser sincera, que o que havia de mais bonito no bairro eram as pessoas. O funcionário carimbou o passaporte e devolveu-o. Inspirou fundo a ganhar coragem:
- Meu nome é Paulinho. Esta noite tem uma festa da Mangueira no Canecão. Você não quer ir comigo?
Marina sorriu. Cantarolou:
- Me leva que eu vou, sonho meu, atrás da verde-e-rosa só não vai quem já morreu.
E assim, poucas horas depois de desembarcar no Rio de Janeiro, Marina estava no Canecão, vendo desfilar no palco, num cenário a lembrar uma roda de samba, Alcione, Emílio Santiago, Beth Carvalho, Milton Nascimento, Djavan, Jamelão e Chico Buarque. Quando a porta-bandeira entrou no palco já Marina estava em transe. Os amigos de Paulinho cercaram-no com perguntas:
- Onde você achou a mina?
- É portuguesa...
Os amigos riram:
- Não brinca, cara, portuguesa onde?
- Juro! Toda ela é portuguesa...
Então um deles, um jovem alto, com uma calvície precoce, suspirou profundamente, resumindo numa só frase a incredulidade geral:
- Tá certo Paulinho, afinal foram eles quem inventou, eu não sabia é que tinham lançado um upgrade.
Marina, alheia ao escândalo da sua própria beleza, levantou-se e foi sambar.”
É um belíssimo texto de Agualusa, extraído do seu livro “Passageiros em Trânsito – Novos contos para viajar”, em que o escritor angolano demonstra toda a sua sensibilidade literária, de forma simples e bem-humorada.
Deixo-vos, então, com “Nada a declarar”
“Marina estudou o funcionário. Era um homem cinzento, fatigado, e estava ali como num velório. Mal olhava os viajantes. Perguntava alguma coisa, dobrado sobre o seu próprio tédio, folheava os passaportes, carimbava-os e devolvia-os:
- Tenha uma boa estada.
Quando chegou a sua vez sentiu que lhe tremiam as mãos. Suava. Hesitou entre enfrentá-lo, olhos nos olhos, aparentando segurança, ou, pelo contrário, fingir-se distraída. Estendeu-lhe o passaporte, já aberto na página com a sua fotografia, ao mesmo tempo que remexia nervosamente na carteira.
- A moça é portuguesa?! Pode dizer-me em que se ocupa?
E ela, num sopro:
- Eu? Sou mulata!
Ia acrescentar: “A tempo inteiro”, mas então reparou no espanto do homem e percebeu que trocara as palavras, mulata ao invés de modelo, e não conseguiu dizer mais nada. O funcionário animou-se. Endireitou o tronco. O rosto ganhou um súbito fulgor:
- Estou vendo, muito mulata mesmo ...
Murmurou isto com um ar expressivo, avaliando-a desde os tacões dos sapatos à revolta cabeleira negra, um metro e setenta e sete da mais fina mistura de raças:
- E o que vem a moça fazer ao Rio de Janeiro?
Marina estremeceu. Desembarcara, enfim, no país do Carnaval. A vida inteira esperara por aquele dia. Veio-lhe à memória a imagem de uma menina sambando numa festa de casamento. Os pais, os tios e os primos em redor, todos rindo e aplaudindo. Nunca mais deixara de sambar. Percorria as cidades da província, as vilas remotas, dançando o samba em bares ou festas populares. Volta e meia posava para anúncios de chocolates e marcas de café. Também se vestia de sambista para promover produtos tropicais nos grandes supermercados. Levara cinco anos a poupar dinheiro para aquela viagem.
- Vim ver o Carnaval, claro. Você não gosta de Carnaval?
O funcionário assentiu, feliz:
- E quem não gosta? Seja então bem-vinda, Marina – disse, imitando o sotaque português – Pelo que estou vendo a moça torce pela Mangueira.
Marina trazia uma blusa cor-de-rosa, rendada nos pulsos, e umas calças de um verde-pálido, talvez demasiado justas. Noventa de peito. Sessenta de cintura. Cento e dois de quadris. Aqueles dois centímetros de arrogante desafio às leis da gravidade faziam a diferença em qualquer palco. Rodopiou uns segundos, ali mesmo, diante do espanto divertido dos turistas, deu uns passos curtos, e Deus parou para ver. O funcionário sacudiu a cabeça, perplexo:
- Você é mesmo portuguesa? – O homem disse aquilo com admiração. Não era a dúvida metódica de um polícia de fronteira, era um elogio. – Tem a certeza?...
Marina sorriu com orgulho:
- Sou portuguesa, com certeza! Tão portuguesa quanto o fado, que antes de ser português foi brasileiro. Tão portuguesa quanto a Carmen Miranda, antes de ser brasileira. Tão portuguesa quanto o bacalhau da Noruega. Sou portuguesa do Alto da Cova da Moura!
O brasileiro nunca ouvira falar no Alto da Cova da Moura. Parecia-lhe que havia um desvario algures naquele nome, uma contradição nos termos, mas, ao mesmo tempo, soava-lhe bem, como se fosse o título de um samba-enredo inspirado em lendas árabes. Mil e uma noites. Aladino e o génio da lâmpada. O tapete voador. Algo assim:
- Maravilha! – exclamou. – Deve ser bonito, lá ...
A rapariga hesitou. Bonito? Não podia negar esse consolo a um estrangeiro. Disse-lhe que sim. Acrescentou, para ser sincera, que o que havia de mais bonito no bairro eram as pessoas. O funcionário carimbou o passaporte e devolveu-o. Inspirou fundo a ganhar coragem:
- Meu nome é Paulinho. Esta noite tem uma festa da Mangueira no Canecão. Você não quer ir comigo?
Marina sorriu. Cantarolou:
- Me leva que eu vou, sonho meu, atrás da verde-e-rosa só não vai quem já morreu.
E assim, poucas horas depois de desembarcar no Rio de Janeiro, Marina estava no Canecão, vendo desfilar no palco, num cenário a lembrar uma roda de samba, Alcione, Emílio Santiago, Beth Carvalho, Milton Nascimento, Djavan, Jamelão e Chico Buarque. Quando a porta-bandeira entrou no palco já Marina estava em transe. Os amigos de Paulinho cercaram-no com perguntas:
- Onde você achou a mina?
- É portuguesa...
Os amigos riram:
- Não brinca, cara, portuguesa onde?
- Juro! Toda ela é portuguesa...
Então um deles, um jovem alto, com uma calvície precoce, suspirou profundamente, resumindo numa só frase a incredulidade geral:
- Tá certo Paulinho, afinal foram eles quem inventou, eu não sabia é que tinham lançado um upgrade.
Marina, alheia ao escândalo da sua própria beleza, levantou-se e foi sambar.”
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