Hesitei em escrever sobre o tema que vos trago hoje, tanto mais que, para quem se lembra da coisa, “a coisa” propriamente dita é um bocado nojenta. E se é verdade que fez parte do dia-a-dia de um passado ainda recente, é igualmente verdade que nos custa acreditar que esse costume tenha sido considerado como um princípio higiénico a seguir.
Apesar das dúvidas e das pressões que foram feitas para não falar do assunto (não, não foram do Governo nem passou por aqui a “asfixia democrática”), decidi mesmo escrever sobre ele porque pensei que os meus amigos seriam levados a considerar que esta é uma típica crónica de final de verão, daquelas que são fruto de um pouco mais de sol na moleirinha.
Mesmo assim, devo dizer que a inspiração surgiu quando assistia a um concerto ao vivo dos “Deolinda”. Para quem nunca os viu actuar – e eu só os conhecia de ouvido – digamos que é um conjunto simpático, ela canta bem, é expressiva e os três músicos, todos de cordas e familiares entre si, têm uma sonoridade interessante, embora o conjunto me pareça situado – desculpem se ofendo as vossas sensibilidades e gostos – entre o popular e o “naif”.
Mas não quero fugir com o dito à seringa. Neste grupo, que agora está muito em voga, uma das coisas que achei mais divertida foi o facto de quase todas as canções serem previamente explicadas como se os presentes tivessem alguma dificuldade em perceber as letras. Em muitas delas o tempo gasto na tal explicação era praticamente igual ao tempo da própria canção.
A certo momento, a Ana Bacalhau, a solista dos “Deolinda”, empregou a palavra “escarrar”. Ouviram bem, “escarrar”, e é aqui que entra a parte um bocado nojenta deste texto.
Não vou entrar em detalhes sobre o significado do termo, deixo isso ao vosso cuidado, mas os mais velhos lembrar-se-ão daqueles recipientes em porcelana que se viam em muitos sítios - nas repartições públicas, nos consultórios médicos e em alguns cafés - conhecidos por “escarradores”. Um nome horrível e nojento, convenhamos, mas que, em alguns casos, até tinham uma aparência exterior bem janota, como se vê nos dois exemplares que estão “plantados” aqui ao lado, um da Vista Alegre e o mais rebuscado, do Rafael Bordalo Pinheiro. Um aparato para onde, ditavam os bons costumes da época, os cidadãos deviam dirigir o respectivo “escarro”.
“Bons costumes”, que, felizmente, foram sendo alterados com os tempos. Hoje os bons tornaram-se muito maus costumes e os cada vez menos frequentes seguidores de tal hábito (mesmo sem as tais porcelanas) são olhados com desdém e muitas vezes invectivados com apropriados impropérios pela sua conduta pouco (nada) higiénica.
Mas vejam como as coisas mudam. A pensar que li há tempos uma crónica escrita em 1933 que dizia, nomeadamente, o seguinte:
“Pouca gente até á data se tem preocupado com o bem estar comum.
Existem meios de defeza a que a maioria das entidades não ligam aquela importância que deviam ligar e neste caso temos a utilidade do escarrador obrigatório nas casas publicas.
O uso do escarrador tem sido descurado no paiz.
Raras são as entidades que o utilisam. Aparte, algumas Repartições publicas, alguns barbeiros e não o vemos nas casas de espectáculos, nos hotéis, casas de hospedes, nas casas de pasto e nos diferentes estabelecimentos comerciais onde o publico aflui com mais frequência ...”
O português é o daquele tempo, os sublinhados são meus e minhas são as desculpas pelo conteúdo algo nojento da crónica de hoje.
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