terça-feira, janeiro 27, 2009

Abaixo o Mistério da Poesia

De António Gedeão,

Abaixo o Mistério da Poesia



Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
Para ver quem é,

Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas
Despertas;

Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
Órfãos de pais e mães,
Andarem acossados pelas ruas
Como matilhas de cães;

Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
Num silêncio de espanto
Rasgado pelo grito da sereia estridente;

Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
Amassando na mesma lama de extermínio
Os ossos dos homens e as traves das suas casas;

Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA

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