Quando, na crónica de ontem, transcrevi parte de uma declaração da Dr.ª. Maria do Carmo Vieira, em que citava um dos heterónimos de Fernando Pessoa – Bernardo Soares – logo fiquei entusiasmado com a ideia de publicar aqui um pequeno texto do seu “O livro do desassossego”.
O livro é constituído por fragmentos e é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa do século XX.
Deliciem-se, então, com a “Estética do Artifício”
“A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar.
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza”.
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